A Índia não é a nova China, diz em livro o economista Raghuram Rajan
Indiano Raghuram Rajan fala, em livro, sobre a história, o papel e os desafios de seu país
VINÍCIUS MÜLLER
Fio condutor
O segredo de Rajan é não condenar o processo de internacionalização econômica, mas destacar as forças mais relevantes da globalização
Há tempos, talvez desde que as diferentes organizações políticas se consolidaram em torno do modelo estatal-nacional, que a pergunta mais importante passou a ser aquela que nos induz a pensar sobre os diferentes resultados econômicos e sociais que cada nação alcançou ao longo de suas respectivas trajetórias. Criou-se assim um campo que envolve, por um lado, inúmeras hipóteses sobre quais fatores seriam capazes de acelerar e manter o desenvolvimento de uma região. Por outro, definimos algumas abordagens que tentam, concomitantemente, guiar e parametrizar as possibilidades de respostas.
No primeiro caso, aspectos geográficos, vantagens comparativas, industrialização, educação e instituições formaram – e, em certos aspectos, ainda formam – o conjunto de itens que, individualmente ou em grupos, respondem à questão. No segundo, comparações entre nações, a menor ou maior integração de cada uma delas à economia mundial e os possíveis ganhos que podem acessar “se fechando” ou “se abrindo” ao mercado internacional se estabeleceram como parâmetros do debate sobre o maior ou menor enriquecimento e desenvolvimento das nações.
Em um estágio mais complexo, a atenção se volta para as intersecções, causalidades e relações diversas entre os elementos indicados. Ou seja, como uma vantagem natural – petróleo, por exemplo – pode ser potencializada por meio da criação de uma institucionalidade que promova a formação de mão de obra com as habilidades necessárias para o uso dessa vantagem. Ou ainda, como a maior inserção no mercado global gera ganhos suficientes para que a produção e o mercado doméstico se ampliem, inclusive em áreas com maior capacidade de agregação de valor e inovação.
O exemplo contemporâneo mais eloquente é o caso chinês. Após uma tática aproximação com os EUA a partir do início da década de 1970, o país se apresentou ao mundo como capaz de oferecer sua vantagem – ou seja, mão de obra barata, abundante e disciplinada – para atrair investimentos do mundo todo interessados em aproveitar tamanha vantagem para produzir barato e, a partir de lá, exportar.
SALTO CHINÊS. Depois de pouco mais de meio quarto de século, os ganhos dessa estratégia chinesa se transformaram em uma mudança de sua posição relativa. De ofertante de mão de obra barata e produtora de mercadorias com baixo valor agregado voltadas à exportação, a China se transformou, por meio de uma combinação que envolveu o uso dos recursos obtidos no mercado internacional em educação e tecnologia, em produtora de mercadorias e serviços mais sofisticados, importadora de matérias-primas e credora internacional.
Embora essa estratégia chinesa tenha sido relativamente bem-sucedida, ela também resultou em alguns gargalos tanto econômicos quanto políticos. Não obstante suas limitações internas, a China, ao se apresentar como aquela que desafia a tese de que o desenvolvimento da economia de marcado é acompanhado e alimentado pelo avanço do Estado liberal, democrático e de direito, se transformou em risco ao mundo construído sob o guarda-chuva e à imagem dos Estados Unidos.
É nessa quadra da história que nossas atenções se voltam à Índia, cujo crescimento econômico, assim como sua população, superou o chinês na última década. Sem a “falha” chinesa de ser autoritária e aliada da Rússia, a Índia, ao contrário, preserva o título de maior democracia do mundo e assume sua posição de aliada de Japão, Austrália e, por consequência, dos EUA. O aumento da incidência de reportagens, textos e análises sobre a Índia nos últimos anos indica a tentativa de criação de uma narrativa pela qual o país substitui, aos olhos do Ocidente, a posição da China como parte mais importante de uma intersecção pelo mercado global que se expande e mantém sob a égide da institucionalidade ocidental, em geral, e norte-americana, em particular.
É como se, após um mal-estar da globalização, alimentado pela ameaça da antes dócil potência do Meio, pela pandemia, pela ascensão de lideranças nacionalistas, pelas guerras na Ucrânia e no Oriente Médio e pela formação do eixo RússiaChina-Irã, tivéssemos uma possibilidade de renascimento da economia global ou ao menos de sua capacidade de enfrentar as tendências contrárias que se espalham a passos largos.
Nesse sentido e embora a Índia possa representar uma armadilha assim como a China já revelou ser, a obra de Raghuram Rajan se oferece como o caminho mais bem pavimentado para entendermos o papel, a história e os desafios de seu país natal. Rajan, economista com ampla passagem pelos escritórios dos EUA (é professor da Universidade de Chicago e foi economista-chefe do FMI), também acumula a experiência de ter sido presidente do Banco Central indiano. Em coautoria com Rohit Lamba, professor da Universidade da Pensilvania, ele acaba de lançar Breaking the Mold: India’s Untraveled Path to Prosperity (Quebrando o Molde: O Caminho Desconhecido da Índia para a Prosperidade, em tradução livre. Princeton University Press, 2024, ainda sem lançamento no Brasil) que, em conjunto com outras duas de suas obras, descortina seu entendimento tanto sobre seu país como sobre a economia mundial.
HIATO. Há um fio que une as três obras de Rajan. Em Linhas de Falha (São Paulo: Editora BEI, 2012), a crise de 2008 é apresentada a partir da identificação de um hiato entre as “regras gerais” da economia mundial e a capacidade de os países, internamente, se organizarem de maneira condizente com essas regras. Esse hiato (as linhas de falha) criou uma retroalimentada armadilha que distancia a velocidade de funcionamento e a capacidade de ganhos possibilitados pela economia global daquilo que os países, internamente,
conseguem absorver. Consequentemente, as interdependências econômicas incentivadas pela globalização geram resultados diferentes nos países que, por sua vez, dependem de como e quanto estão preparados para tais relações com a economia mundial. Por isso, uma crise como a de 2008, cuja origem estava nos EUA, impacta de modo diverso os muitos países.
O segredo de Rajan é não condenar o processo de internacionalização econômica e muito menos propor uma saída nacionalista, mas, em seus lugares, identificar quais são as forças mais relevantes da globalização e como elas lidam mal e pouco reconhecem as forças contrárias que atuam nos planos domésticos. Não para que os países se voltem a si mesmos, mas para que se insiram com mais qualidade na economia global.
Ou seja, que a economia mundial depende tanto de sua capacidade de expansão quanto da capacidade de reduzir as diferenças com os aspectos nacionais que têm potencial para enfrentá-la. E que os resultados positivos da economia global são mais perceptíveis quando as questões locais estão alinhadas com as internacionais. Nesse caso, os resultados negativos de uma crise como a de 2008 serão menos impactantes nos países, facilitando a reorganização produtiva e econômica e, consequentemente, diminuindo o apelo de propostas nacionalistas e populistas.
Já em O Terceiro Pilar (The Third Pillar: How Markets and The State Leave The Community Behind. New York: Penguim Press; 2019), Rajan identifica o desequilíbrio entre a capacidade de expansão da economia global, a capacidade de governança política e diplomática dessa mesma expansão e as características culturais e sociais das populações locais. Coerentemente, trata esse desequilíbrio não como motivo para rechaçar a economia global, mas para alertar que o relativo sucesso alcançado pela governança global em acompanhar a velocidade estabelecida pela expansão da economia de mercado internacionalizada não teve uma contrapartida em relação à capacidade do próprio mercado para identificar, incluir e potencializar as questões regionais.
OPORTUNIDADE PERDIDA. Assim, não posiciona tais elemento do terceiro pilar – a cultura regional – como uma antítese à globalização, mas sim como o elemento que, se pouco entendido pelas forças econômicas globais, se transforma, mais do que uma simples reação à expansão econômica, em uma oportunidade perdida. E não só para a economia global, mas também para as localidades que deixam de ganhar os benefícios de uma economia mais integrada.
Agora, em Breaking the Mold, Rajan e Lamba apresentam o
Xadrez asiático País pode ser uma peça essencial em um cenário de escalada da violência que opõe o eixo ChinaRússia-Irã ao Ocidente
que entendem ser o caminho do desenvolvimento indiano a partir do reconhecimento de que esse processo passa pela capacidade do país para melhor se preparar para a integração econômica mundial. Lançam mão, para tanto, de uma abordagem conhecida como a “curva do sorriso” da agregação de valor. Essa curva, em forma de U, indica que a agregação de valor na fase da ideia e pesquisa é maior do que na fase de execução e produção. E volta a subir na fase pós-produção, ou seja, em serviços de marketing, digitais e financeiros. Nesse sentido, indicam que, embora seja uma opção tentadora, seria um erro a Índia trilhar o caminho que a China fez. Tanto porque as peculiaridades indianas incluem outras características, mas principalmente porque seria impossível – e indesejável – que o país oferecesse como atrativo aos investimentos sua mão de obra barata.
Ao contrário, dizem, o caminho da Índia passa pela aceleração da preparação de mão de obra para a fase pós-produção, aquela que aumenta a agregação de valor. Consequentemente, também da criação de empregos compatíveis com essa fase da cadeia produtiva. Uma ideia simples, mas de difícil execução. Os desafios para a proposta de Rajan e seu coautor, Rohit Lamba, incluem algumas perspectivas otimistas que têm em relação aos próximos passos da reorganização da economia global. Esse otimismo é impulsionado pela narrativa ocidental de que a Índia, dada sua relação histórica com a democracia, é uma aposta mais segura para atrair investimentos do que foi a China.
CENTRALIZAÇÃO. Os números do crescimento indiano na última década reforçam tal percepção. Contudo, vale lembrar que o recente desenvolvimento indiano se ancorou em reformas voltadas à centralização política em um ambiente historicamente fragmentado.
Se, por um lado, essa centralização política envolve, de certo modo, um processo de formação de um Estado mais moderno – no sentido de unificação monetária, fiscal e militar – em uma sociedade tradicionalmente dividida por critérios que envolvem religiosidade, cultura e o path dependence do sistema de castas, por outro vem sendo promovida sob uma proposta nacionalista, personalista e, no limite, populista.
Ou seja, a mesma complexidade usada por Rajan para identificar as “linhas de falha” entre a economia nacional e a global, assim como para identificar o “terceiro e mais frágil pilar” que a globalização econômica pouco incorporou, deve ser usada para salientar que os riscos de um desequilíbrio interno são grandes. Os ganhos de um novo ajuste indiano às demandas do mercado global podem ser imensos, mas, ao mesmo tempo, a absorção desses ganhos pode reforçar as desigualdades internas históricas do país. Essa “linha de falha” doméstica pode ampliar a tração do lado populista que, embora democrático, corre o risco de ampliar a armadilha na qual outros países já caíram.
Que a Índia em certa medida já é vista pelo Ocidente como a “nova China” não causa mais surpresa. Tampouco não é novidade que é uma peça fundamental em um cenário de escalada da violência que opõe o eixo China-Rússia-Irã ao mesmo Ocidente. Se tal perspectiva se confirmar, a obra e o pensamento de Rajan serão fundamentais para que o Ocidente entenda seu novo aliado preferencial. E para que os próprios indianos se preparem para alcançar resultados que os aproximam dos “tigres asiáticos”. Caso contrário, ficarão mais próximos dos latino-americanos. •
VINÍCIUS MÜLLER É DOUTOR EM HISTÓRIA ECONÔMICA, MESTRE EM ECONOMIA E BACHAREL EM HISTÓRIA. PROFESSOR HÁ 30 ANOS, COM EXPERIÊNCIA EM ENSINO BÁSICO E SUPERIOR NAS ÁREAS DE HISTÓRIA, ÉTICA E DESENVOLVIMENTO. AUTOR DE ‘EDUCAÇÃO BÁSICA, FINANCIAMENTO E AUTONOMIA REGIONAL’ E ‘A HISTÓRIA COMO PRESENTE’. ATUALMENTE, É PROFESSOR NO CLP, INSPER, PROFESSOR CONVIDADO DA FUNDAÇÃO DOM CABRAL E PROFESSOR DA FACULDADE BELAVISTA
CULTURA & COMPORTAMENTO
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2024-11-06T08:00:00.0000000Z
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