O Estado de S. Paulo

O caminho para chegar ao Oscar

Premiado em festivais, ‘Ainda Estou Aqui’ está em campanha pela estatueta

MARIANE MORISAWA

Bem cotada

Fernanda Torres, no papel de Eunice Paiva, surge como candidata a melhor atriz internacional, no Oscar 2025

Desde sua estreia mundial no Festival de Veneza, em setembro, Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, tem provocado comoção. O filme baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva sobre sua mãe, Eunice Paiva, conquistou o prêmio de melhor roteiro em Veneza, depois de sessões de imprensa e de gala embaladas por choro e aplausos entusiasmados.

De lá para cá, vem conquistando o mundo a história da mulher que criou sozinha os cinco filhos e virou advogada de direitos humanos e de indígenas após a detenção e o desaparecimento do marido Rubens Paiva durante a ditadura militar.

Primeira produção original Globoplay, Ainda Estou Aqui entrou nas listas de cotados para o Oscar ao ser recebido calorosamente nos festivais de Toronto, San Sebastián, Biarritz, Pingyao, Nova York, Londres e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, onde foi o ingresso mais disputado entre as 420 produções disponíveis e levou o prêmio do público de melhor filme brasileiro. Também foi o preferido da audiência em Vancouver (Canadá) e em Mill Valley (EUA).

O longa-metragem acaba de entrar em cartaz nas salas de cinema brasileiras cercado de expectativa por um público que ainda não viu, mas já tem orgulho da produção – um feito raro para um filme brasileiro. A presença constante de Ainda Estou Aqui nas listas de prováveis indicados para o Oscar, em categorias que vão de filme internacional ao de melhor atriz para Fernanda Torres, só aumentou a expectativa.

“Há um momento em que o filme deixa de ser da família que o criou e passa a ter uma vida própria, completando-se no olhar dos outros”, disse Walter Salles em entrevista ao Estadão. “Tem sido inspirador ver que ele tem conseguido ecoar em lugares muito diferentes.”

CAMPANHA. Essa peregrinação por festivais ao redor do mundo, incluindo o AFI Fest e o Hollywood Brazilian Film Festival, em Los Angeles, faz parte da “nova ordem mundial do cinema”, segundo descreveu o diretor. Eles são a campanha para o Oscar. “Não existem mais aqueles anúncios pagos nas revistas, mas um boca a boca que vem dos festivais, fundamentais para a formação de público e o desvendamento dos filmes, que passam a existir a partir dessa soma das reações de cada festival.”

É, portanto, uma campanha bem diferente daquela feita para Central do Brasil (1999), a última vez que uma produção brasileira concorreu ao Oscar de filme internacional (na época, chamava-se filme em língua estrangeira) e melhor atriz, justamente as duas categorias nas quais Ainda Estou Aqui está mais cotado.

A internet brasileira não deixou passar batido que Fernanda Torres pode ganhar a estatueta 26 anos depois de sua mãe, Fernanda Montenegro – que aparece no final de Ainda Estou Aqui –, perder o Oscar para Gwyneth Paltrow. Claro que, como a própria Fernanda Torres disse, ser cogitada a uma indicação é uma proeza e tanto para uma atriz brasileira.

Walter Salles considera quaisquer prêmios no exterior um extra. “Começa agora a parte mais importante na vida desse filme (com a estreia brasileira). Jamais poderíamos ter previsto a trajetória em festivais e a possibilidade de premiações A, B ou C, da mesma forma como a gente não consegue antecipar a reação das pessoas e nem deve tentar”, disse o cineasta. “A gente queria oferecer um reflexo possível daquela época. Este é mais um dentro de uma família de filmes que tratam da memória brasileira durante esses anos tão traumáticos que vivemos e por extensão da memória coletiva”, afirmou ele, referindo-se ao período da ditadura.

Essa conjugação de trajetórias individuais e coletivas, que terminam sendo também as de um país, sempre interessou a Walter Salles. Em Terra Estrangeira (1995), o exílio dos personagens reflete os 800 mil brasileiros que partiram do Brasil naquele momento de confisco da poupança no governo Collor. Em Central do Brasil (1998), a busca pelo pai é também a busca e o reencontro com o País.

Em Ainda Estou Aqui, a casa ensolarada, cheia de música, de calor humano e de vida do início do filme, quando o casal Rubens (Selton Mello) e Eunice (Fernanda Torres) recebe os seus amigos e os amigos dos cinco filhos, dá lugar a um cenário de horror, de sombras, quando o engenheiro e ex-deputado é levado por agentes da ditadura e nunca mais é visto.

“Pelo microcosmo da família Paiva, a gente fala sobre um sonho de país nos 30 primeiros minutos – e, depois, desse sonho de país sendo ceifado, obrigando a encontrar formas de resistência possíveis e se traduzindo na reinvenção de Eunice ante o mundo, com todas as consequências que isso teve”, disse Walter Salles. Para ele, o cinema e a literatura são essencialmente instrumentos contra o esquecimento. “E a gente tem esquecido muito.”

Foi essa também a razão pela qual Marcelo Rubens Paiva decidiu recuperar a história de sua mãe. “As pessoas estavam esquecendo o que tinha sido a ditadura, defendendo intervenção militar, homenageando torturadores”, disse o escritor ao Estadão. Quem é jovem não conhece os filmes de Costa-Gavras sobre as ditaduras latino-americanas. “Talvez recuperar o interesse por esse período seja o nosso papel”, completou Paiva.

VOLTA À FICÇÃO. Ainda Estou Aqui é a volta de Walter Salles aos longas de ficção. Desde 2008, com Linha de Passe, ele não lançava um longa-metragem de ficção em português, e desde 2012, com Na Estrada, adaptação do livro de Jack Kerouac estrelada por Kristen Stewart e Kirsten Dunst, não estreava um longa de ficção.

Nesse intervalo, ele voltou ao seu território original, o documentário, com Jia Zhangke, Um Homem de Fenyang (2014), sobre o cineasta chinês, e Vozes de Paracatu e Bento (2018), sobre a tragédia provocada pelo rompimento da barragem da Samarco em Minas Gerais, que também inspirou o curta de ficção Quando a Terra Treme (2017).

Foi nesse meio tempo, em 2015, que Marcelo Rubens Paiva lançou seu livro. Em vez de focar o seu pai, o escritor decidiu contar a história de sua mãe. “Como essa mulher, mãe de cinco filhos muito bem-educados, não era conhecida?”, disse. “Minha mãe é o símbolo da resistência. A Clarice Herzog, a Ana Maria Dias. São mulheres que tiveram de enfrentar a ditadura. Seus maridos foram presos, torturados e mortos, e elas tiveram de ir atrás de respostas e pedir Justiça. Por que os homens são heróis, e as mulheres, não? Quando vislumbrei isso, pensei: ela merece um livro.”

Com as memórias de Marcelo Rubens Paiva, Walter Salles encontrou o objeto de seu próximo longa de ficção. Amigo das irmãs de Marcelo, o diretor tinha estado naquela casa muitas vezes na sua adolescência. “É inegável que essa história é próxima de mim”, afirmou. A primeira parte do filme, disse ele, tem relação direta com os estilhaços de memória que guarda daquela casa em que as janelas e as portas estavam sempre abertas para o mundo.

No filme, quando Rubens Paiva é levado, em janeiro de 1971, as janelas, portas e até cortinas se fecham, a luz se esvai, as risadas cessam, as palavras deixam de ser proferidas. “Essa família foi roubada daquele estar no mundo”, afirmou o cineasta. Essa segunda parte não foi testemunhada por Walter Salles, mas imaginada com a ajuda do livro de Marcelo (interpretado no filme por Guilherme Silveira na infância e Antonio Saboia na fase adulta) e dos depoimentos de suas irmãs Veroca (vividas no filme por Valentina Herszage e Maria Manoella), Nalu (Barbara Luz e Gabriela Carneiro da Cunha), Eliana (Luiza Kosovski e Marjorie Estiano) e Babiu (Cora Mora e Olivia Torres).

O momento em que aquela casa foi fechada para o mundo, e a família voltou para São Paulo, marcou um antes e depois nas vidas de quem, como Walter Salles, conviveu com a família Paiva. “O Rubens foi o primeiro pai de amigos meus que desapareceu e que depois descobrimos ter sido assassinado. Então, se sobrava alguma inocência para nós jovens que entrávamos na adolescência, ela foi perdida ali.”

AMADURECIMENTO. Dada essa proximidade do diretor com a família, ele levou tempo para encontrar uma maneira de narrar. “Eu estava preocupado com a essência das coisas, com o desejo de ser honesto na forma de contar, sem criar artificialmente curvas dramáticas”, disse o cineasta.

Na coletiva de imprensa em Veneza, Fernanda Torres mencionou ter chorado muito em duas cenas, que foram cortadas na edição. Seu trabalho impressiona justamente por ser contido. “A Eunice nunca se permitiu chorar. Então havia um pudor próprio à personagem que tínhamos de respeitar”, afirmou Salles.

“O filme é um exercício de subtração, há um desejo de dizer muito com pouco, deixar perguntas abertas. Por exemplo, nunca explicamos o acidente do Marcelo. Pessoalmente, eu gosto do cinema que te deixa com perguntas.”

O filme foi feito para dialogar com o público brasileiro, mostrando a história de um pai, uma mãe, seus filhos, vivendo em uma casa amorosa, interrompida pela violência do Estado em sua forma mais cruel, já que obriga a família inteira a conviver com a incerteza e a lutar por algo tão simples e básico quanto uma certidão de óbito.

“Ainda Estou Aqui quer levantar perguntas, suscitar reações, emoções, talvez ampliar o debate tão binário no qual a gente se encontra hoje”, afirmou Walter Salles. “Queríamos oferecer um filme honesto, feito com a percepção de que o cinema ainda é uma forma de refletir quem nós éramos e, eventualmente, quem queremos ser.”

História ‘As pessoas estavam esquecendo o que tinha sido a ditadura’, diz o autor Marcelo Rubens Paiva

A FUNDO

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2024-11-08T08:00:00.0000000Z

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