O vício em comida que não é comida
Infectologista britânico Chris van Tulleken fala sobre o papel dos alimentos industrializados na saúde humana.
LEON FERRARI Chris van Tulleken Infectologista britânico e professor-associado da UCL
Made in Brazil Lançada nos anos 2000, a classificação NOVA revolucionou a pesquisa em nutrição no mundo
“Ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram… não alimentos”, escreve o britânico Chris van Tulleken, infectologista no Hospital de Doenças Tropicais em Londres e professor-associado da University College London (UCL), no livro Gente Ultraprocessada: Por Que Comemos Coisas Que Não São Comida, e Por Que Não Conseguimos Parar de Comê-las (Editora Elefante), que acaba de ganhar uma versão traduzida para o português.
“Muito do que comemos são restos da indústria do bioetanol e do milho. Comemos muitas coisas que eram apenas alimento industrial para animais, que são reaproveitadas para uso humano. Isso simplesmente não atende à definição de comida. Não é projetado para nos nutrir, mas para tirar nosso dinheiro e nos fazer comer o máximo possível”, explica Van Tulleken ao Estadão.
Para escrever o livro, ele se lançou a um desafio: pararia de comer ultraprocessados por um mês. Seria examinado de todas as maneiras possíveis. No mês seguinte, seguiria uma dieta em que 80% das calorias viriam desses produtos.
O teste foi inspirado no trabalho do pesquisador americano Kevin Hall. Uma equipe liderada por ele mostrou, em experimento controlado em laboratório, que passar duas semanas à base de uma dieta com ultraprocessados fez os participantes consumirem, em média, 508 calorias a mais por dia em comparação a uma alimentação sem esses produtos. Nesse período, os indivíduos ganharam cerca de 0,9 kg. A pesquisa foi publicada na revista Cell Metabolism.
O conceito de ultraprocessados é brasileiro. Ele faz parte da classificação NOVA, criada pelo médico Carlos Monteiro e seus colegas do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), da USP. De forma bem simples, esse tipo de produto passou por diversos processos industriais e é formulado com ingredientes que ninguém usa na cozinha – como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos.
Desde que foi lançada, nos anos 2000, a classificação NOVA revolucionou a pesquisa em nutrição no mundo, dando apoio a um acúmulo de evidências que relacionam os ultraprocessados à atual pandemia de sobrepeso e obesidade. Chris duvidava desse enredo e decidiu colocar o próprio corpo à prova. Enquanto fazia isso, conversou com pesquisadores independentes – ou seja, não financiados pela indústria alimentícia – e com pessoas de dentro dessas empresas. O resultado é um livro provocante e envolvente.
Com a obra, Chris não propõe nenhuma dieta nem aconselha a rejeitar os ultraprocessados. O que ele deseja é contribuir com informações a respeito desses produtos, explorando o modo como são feitos e com qual o objetivo. No fim das contas, espera que as pessoas concluam que também é preciso sentir “nojinho” dos ultraprocessados. “É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar”, afirma.
Gostaria que você contasse sobre a escolha do título do livro. O ultraprocessamento não está presente apenas nos alimentos?
Uma vez que você entende que o ultraprocessamento não tem a ver (só) com emulsificantes, estabilizantes, umectantes ou embalagens, mas é um conjunto de ferramentas de design e desenvolvimento que cria produtos viciantes, ou quase viciantes, a partir de materiais baratos, percebe que a nossa tecnologia é ultraprocessada. Os aplicativos em nossos celulares são ultraprocessados. Os próprios celulares são ultraprocessados.
Nossa música está cada vez mais ultraprocessada. Eu tenho uma filha de 7 anos, e ela escuta muita música pop, que é o equivalente musical ao alimento ultraprocessado, já que foi projetada por computadores para ser consumida repetidamente. Nosso mundo está cada vez mais ultraprocessado, porque as corporações que fabricam os produtos são cada vez maiores, mais poderosas e transnacionais, e são guiadas pelos mesmos incentivos financeiros. Não estou criticando. Essa é apenas a realidade do mundo. E eu não sei o que podemos fazer a respeito, além de revelar isso e tentar imaginar uma forma de regulação melhor. Mas, sim, o ultraprocessamento vai muito além dos alimentos.
O que o leva a se preocupar com essa sociedade ultraprocessada?
O fato de que ela é completamente insustentável. Há duas razões básicas. A primeira é a emissão de gases de efeito estufa. O segundo maior emissor é o sistema alimentar. E também destruímos a capacidade do nosso planeta de absorver alguns desses gases ao derrubar florestas tropicais para cultivar soja, palma e criar gado. Quero dizer, também há a questão automotiva, da aviação e nossa dependência geral do carvão. Mas muito do carbono que queimamos vem do cultivo do que comemos. Sim, estou extremamente preocupado do ponto de vista planetário e me interesso por questões de justiça, igualdade e direitos para todos. Eu pago impostos, mas as empresas não pagam impostos suficientes. Eu estou arcando com os custos de saúde, enquanto as empresas lucram. Elas ficam com todos os benefícios, e você e eu assumimos todo o risco.
Você escreveu que “ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram não alimentos”. Poderia explicar melhor o fenômeno?
A comida humana foi inventada principalmente por mulheres, em cavernas; depois, em cabanas; e, por fim, em cozinhas domésticas. Foram principalmente as mulheres que descobriram como extrair energia e nutrientes de milhares de plantas e animais diferentes. Podemos nos alimentar talvez de 10 mil espécies diferentes, e o propósito dessa comida era nos nutrir. O propósito de toda comida deveria ser a nutrição. Nutrir as pessoas física, espiritual, emocional, cultural, social e politicamente. Historicamente, a comida não tinha a ver com crescimento financeiro. Quais são, hoje, as definições comuns sobre “o que é comida”? É apenas algo para transformar nossa saúde em dinheiro.
Você escreveu que os ultraprocessados talvez sejam o tipo de alimento que menos inspecionamos antes de levar à boca. O que foi que criou esse senso de segurança em relação aos ultraprocessados?
Historicamente, os humanos estavam certos em se preocupar se a comida era microbiologicamente segura, se não iria te envenenar porque estava cheia de bactérias. E a indústria alimentícia tem dito de forma muito hábil: “Nossa comida não vai te dar diarreia ou te deixar agudamente doente”. Eles exploram nossa capacidade inata de ficar um pouco enojados com a comida. E é isso que estou tentando reverter com o livro, é fazer o leitor sentir nojo pela comida ultraprocessada. É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar. A grande questão é: como elas dominaram o sistema alimentar? As empresas alimentícias vencem a comida tradicional em termos de conveniência, já que você pode simplesmente colocá-la no microondas; e também no preço, porque, para produzi-la, partem da monocultura da soja e ingredientes que custam centa
“Nossa tecnologia é ultraprocessada. Os aplicativos do celular também. Nossa música está cada vez mais ultraprocessada” “Eles exploram a nossa capacidade de ficar enojados com a comida. É isso que tento reverter com o livro”
Chris van Tulleken Infectologista britânico
vos por tonelada; e eles vencem no marketing, pois são capazes de cobrir tudo com alegações de saúde e slogans.
Mas a principal razão pela qual eles dominam o sistema alimentar é que as grandes empresas alimentícias pagaram cientistas muito habilidosos para fazer duas coisas. Primeiro de tudo, desenvolver a comida em si. Sabemos que, na Unilever e na Pepsi, cientistas foram pagos para testar a comida colocando pessoas em scanners de ressonância magnética. A ideia era avaliar como as partes do cérebro relacionadas à recompensa e à adição funcionavam. Eles usam cientistas brilhantes para criar comida que não é necessariamente a mais deliciosa, mas é muito difícil de parar de comer. A segunda coisa que esses cientistas pagos pela indústria fazem é defender essa comida: “É a única maneira de alimentar o mundo”. “Essa comida é segura, é inofensiva.” No fundo, a verdade é que eles usaram todas as ferramentas à disposição e gastaram dinheiro. O orçamento de marketing voltado para o consumidor da Nestlé, nos últimos anos, é de cerca de US$ 10 bilhões por ano. Eles têm mais dinheiro do que a maioria dos governos.
Falando sobre obesidade, você disse que “somos muito menos responsáveis pelo nosso peso do que um esquiador é por quebrar a perna”. O que isso significa?
Todos que vivem com excesso de peso e obesidade – eu mesmo já vivi com excesso de peso, e meu irmão com obesidade – sente como se fosse culpa deles, como se tivessem a escolha de comer os alimentos não saudáveis, e a realidade é que não escolhemos quais alimentos compramos. Isso é determinado pelo preço, pela disponibilidade, pela maneira como nossos pais nos alimentaram. É como dizer que as pessoas escolhem fumar. Pessoas na indústria alimentícia me disseram, muitas delas, que fazem esses alimentos para serem viciantes. Então, é como dizer aos fumantes: “A razão pela qual você fuma é porque é fraco demais para largar o cigarro”. Força de vontade não tem nada a ver com isso.
Sabemos que todos no Brasil e na América do Norte começaram a ganhar peso ao mesmo tempo. Nos EUA, foi em meados da década de 1970. Negros, brancos, hispânicos, mulheres idosas, homens jovens, todos ganharam peso juntos. Você não pode me dizer que todas essas pessoas perderam a responsabilidade moral ao mesmo tempo em 1975. O que mudou foi o ambiente alimentar.
Temos então evidências suficientes para dizer que a pandemia de obesidade e sobrepeso é causada pelos ultraprocessados?
É muito clara a evidência de que alimentos ultraprocessados causam o que chamamos de desfechos negativos em saúde. Portanto, causam ganho de peso e obesidade, câncer, morte prematura e uma série de outras coisas. Agora, como temos certeza de que são os alimentos ultraprocessados? Há duas razões. A indústria alimentícia quer saber: é o ultraprocessamento ou são apenas a gordura, o sal e o açúcar? A resposta a essa pergunta não é muito importante, embora possamos respondê-la. Mas todos concordam que, quando se trata de desfechos negativos em saúde, o problema são produtos industriais pré-preparados ricos em gordura, sal, açúcar e calorias. Um artigo que acabei de escrever (ainda
não publicado) mostra que 99% dos alimentos ultraprocessados têm altos níveis disso. Todos os alimentos ultraprocessados têm altos níveis de gordura, sal, açúcar e de calorias. Ninguém acredita que isso seja um problema de cozinhar em casa.
Temos uma montanha de evidências experimentais sobre os aditivos, sobre as propriedades dos alimentos, sobre os níveis de sal, gordura, açúcar e calorias. E, uma última coisa, isso é coerente com todas as outras evidências. Temos evidências muito boas de que comer dietas minimamente processadas, com peixe, frutas, vegetais, nozes e leguminosas, nos faz bem.
Agora, as únicas coisas que quero destacar são duas notas de cautela. Nem todos os alimentos ultraprocessados são igualmente prejudiciais. Portanto, comer um doce completamente sintético é quase certamente pior para você do que comer um pão integral, que apenas tem um emulsificante.
A outra coisa a dizer é que há muitos produtos no mercado que não são ultraprocessados e não são saudáveis, especialmente os produzidos no Reino Unido. Porque as empresas perceberam que o público entendeu o perigo dos ultraprocessados e, portanto, estão retirando os aditivos. Coloquei isso no livro. Tive de ligar para Carlos (Monteiro) e a equipe dele, e mostrar alguns desses produtos e em seguida lhe perguntar se eram ultraprocessados. “Essa lasanha que não tem aditivos é um ultraprocessado?” Tecnicamente não é, mas funciona como se fosse – e ainda continuará sendo ruim para você.
Sobre seu experimento, você diz ter passado semanas comendo quase só ultraprocessados, e depois semanas sem eles. Como isso transformou a maneira como você se alimenta hoje?
O principal é que ganhei muito peso, meus hormônios ficaram desregulados e a ressonância magnética do meu cérebro mudou (após quatro semanas comendo só ultraprocessados). Uma coisa que aconteceu com minha dieta foi uma experiência de aversão. Eu conversava com Fernanda Rauber (pesquisadora no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo), e ela continuava dizendo: “Isso não é comida”. A comida se tornou horrível para mim. Então, eu parei de comer essa comida.
Demorei para perder o peso que ganhei – agora já perdi tudo. O que eu tive de fazer foi retirar cada partícula de alimento ultraprocessado da minha dieta. De certa forma, foi bastante extremo, e sou sortudo por poder fazer isso. Eu realmente não quero comer ultraprocessados, mas também não aconselho ninguém a fazer isso. Fiquei impressionado com o quão difícil foi para mim, como médico que estuda nutrição, perder seis, sete quilos. Foi realmente difícil. E isso me deu muita empatia com meus pacientes.
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