O Estado de S. Paulo

Com os pés no chão

Correr sem usar tênis, descalço ou de sandálias, ganha adeptos e tem benefícios, mas é preciso ficar alerta com relação a possíveis lesões

DANILO CASALETTI ESPECIAL PARA O ESTADÃO

Você já ouviu falar em barefoot? A palavra em inglês significa descalço. Porém, o termo também se refere a correr descalço, a barefoot running. Muito comum na areia, a modalidade também pode ser realizada em outros tipos de solo, como asfalto, terra e grama. Até em esteira é possível correr sem usar nada nos pés. A prática vem despertando o interesse de corredores de 2010 para cá, depois que o jornalista americano Christopher Mcdougall lançou o livro Nascido para Correr: A Experiência de Descobrir uma Nova Vida. A publicação virou best-seller e ocupou durante um ano a lista de mais vendidos do jornal The New York Times. Fã de corridas, o autor sofria com repetidas lesões e dores nos pés. Desacreditado por um médico que lhe disse que o corpo humano não suportava o esforço físico (sobretudo o dele) que a corrida exige – atualmente, Mcdougall tem 60 anos –, ele foi conhecer os índios tarahumaras, que vivem nas regiões montanhosas do México. Eles são considerados exímios corredores, resistentes à dor e, segundo o escritor, os mais calmos e saudáveis do planeta. A tribo já foi tema de documentários na Netflix e no Discovery Channel. Por lá, descobriu histórias de atletas que corriam descalços e abominavam o uso de tênis – esse tipo de calçado, segundo eles, pode “matar” um corredor. Já os índios, para correr, utilizavam sandálias que eles mesmo desenvolveram. O subtítulo que o livro de Mcdougall ganhou na tradução para o português – A Experiência de Descobrir uma Nova Vida – talvez não seja um exagero. Pelo menos para Natan Salvan, de 49 anos, que desde 2012 é adepto de treinos e provas com os pés descalços. “Você aprende a correr de novo”, diz Salvan, que à época fazia parte de um grupo de corredores chamado Força Vegana. Inspirados pelo livro, e em busca de uma vida mais minimalista, os corredores tinham como objetivo diminuir o drop do calçado (diferença de altura entre a parte de trás e a parte da frente do tênis), passar para o uso de sandália para, por fim, correr descalço. Salvan embarcou nessa transição, que durou alguns meses. Segundo ele, o processo foi tranquilo. Com os devidos cuidados, ele afirma nunca se ter lesionado. As diferenças na pisada e na postura logo apareceram. “Você fica mais ereto. Seu calcanhar não bate ou bate muito pouco no chão”, explica. Especializado em provas de aventura, ele conta que marcou seus melhores tempos correndo descalço, como na Maratona de São Paulo e em uma prova de 10 km em Portugal. O corredor sempre se informa sobre a condição do solo. Em montanhas, podem haver espinhos, por exemplo. Nesse caso, ele usa uma sandália. Em cidades como São Paulo, que tem ruas e calçadas malconservadas, é preciso ter cuidado. O asfalto que os corredores chamam de “chokito”, aquele cheio de pedriscos, pode machucar a sola dos pés. “Correr descalço traz uma sensação de liberdade. Tem gente que diz que só o tênis lhe dá a corrida perfeita, defende que você precisa ter vários pares para praticar o esporte. Não é verdade”, garante Salvan.

O QUE DIZ A CIÊNCIA. Aprofessora Ana Paula da Silva Azevedo, do laboratório de Biomecânica da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP), direcionou seus trabalhos de doutorado e pós-doutorado para essa temática. A ideia da pesquisadora era, além de se aprofundar no tema, desenvolver um método de treinamento para quem pretendesse adotar a modalidade. Uma de suas inspirações foi o artigo do paleoantropólogo Daniel Lieberman, professor do Departamento de Biologia Humana Evolucionária da Universidade Harvard, publicado pela revista Nature em 2004. Nele, Lieberman aborda a questão sobre o ponto de vista evolucionista. “Queria investigar o que essa estratégia poderia trazer de benefício ou prejuízo para o corpo e, principalmente, por saber que abandonar o calçado na corrida não é uma tarefa das mais fáceis”, explica. De acordo com Ana Paula, se bem adotada, a corrida sem tênis promove uma mudança na geometria de aterrissagem do pé. A maioria das pessoas, quando corre de calçado, aterrissa com o calcanhar – é um padrão natural. Com o avanço do treino com os pés nus, essa aterragem passa a ser feita com a ponta dos pés – hábito que se aproxima, por exemplo, de tribos ou comunidades que têm o hábito de andar com os pés descalços. “Esse ajuste da pisada diminui a sobrecarga nos joelhos. Isso já seria um benefício. Entretanto, a carga passa a ser exercida sobre o tornozelo. Por isso, é importante que a corrida descalça seja bem utilizada e acompanhada por profissionais para evitar lesões. Ela é um remédio, mas a dose precisa ser prescrita de maneira correta”, observa a professora. O alívio para os joelhos ocorre ao longo do tempo, com o treinamento, e não de maneira rápida. Na pesquisa conduzida por Ana Paula, esse benefício veio depois de 10 a 16 semanas de treinamento. A professora ressalta outra vantagem. Quando se corre usando um calçado, há uma diminuição de dados perceptíveis no corpo – impacto ou atrito do pé com o solo, por exemplo. “Ele se acomoda e fica difícil de fazer os ajustes necessários. Já descalço, as demandas da corrida sob o corpo ficam mais claras. Essas informações são enviadas aos músculos e articulações que promovem a correção dos movimentos.” Ana Paula afirma que ainda há muito a ser estudado sobre esse assunto. Até o momento, o que se sabe é que, para performance da corrida, ou não há influência ou ela é muito pequena. Sobre as lesões, a diminuição ocorre se uma boa estratégia de treino for adotada – periodização e progressão. “Caso contrário, tanto faz correr de tênis ou descalço”, avalia. Para quem não consegue correr descalço, por conta da temperatura do solo ou abrasão – algo que faz parte da adaptação –, há no mercado os chamados calçados minimalistas, que prometem suavizar o impacto, mas sem tirar o contato com o solo. PREPARO. O ultratriatleta fluminense Sérgio Cordeiro, de 68 anos, é um dos maiores representantes da corrida descal

ça no Brasil. Entretanto, sua experiência com a prática é totalmente empírica, nascida de uma necessidade. E vem de longe, muito antes de ela virar tema entre corredores e acadêmicos. Cordeiro começou a correr no final dos anos 1970, quando a corrida aberta de rua apareceu no Brasil, e já participou de inúmeras provas aqui e no exterior. Logo depois, se interessou pelo triatlo. Nessa época, não existiam tênis próprios para corrida por aqui. De família humilde, o atleta não tinha dinheiro para comprar calçados importados. Corria de conga escolar. A borracha dura do modelo lhe causava dores e bolhas. “Parecia que eu estava com o pé engessado. Comecei a correr descalço. Virou um hábito”, lembra Cordeiro. O atleta diz que a sensação, além de liberdade, era a de que corria mais rapidamente, com melhor projeção e estabilidade do corpo. Anos mais tarde, já patrocinado por uma famosa marca de tênis, Cordeiro começava a prova usando o calçado. Passava alguns metros da largada e já o tirava dos pés. Cordeiro disputará, entre os dias 2 e 9 de abril, em Búzios, a etapa do Circuito Mundial de Ultra Triathlon. Serão mais de 200 km de corrida. “Já pensou eu correr tudo isso de tênis?”, comenta, entre risadas. Brincadeiras à parte, ele sabe que a prática exige cuidados. “Jamais diria: larguem o tênis e corram descalços. Eu fiz por necessidade. Hoje temos a tecnologia dos calçados a nosso favor.”

PERFORMANCE.

Para o preparador físico Felipe Rabelo, consultor e idealizador do curso A Ciência da Corrida de Rua, a melhora nos indicadores de performance e a boa adaptação dos corredores devem ser encaradas como uma exceção e não como regra. “Há quem tenha se beneficiado, mas há relatos de pessoas que fizeram a transição e tiveram uma resposta negativa, inclusive lesões”, revela. Além do planejamento e da quantidade de treino, segundo Rabelo, é preciso observar se o corredor está preparado para encarar as demandas mecânicas e de estresse provocadas por fatores externos que, inevitavelmente, repercutirão no corpo. “Precisamos voltar para os fatores mais básicos da corrida, mesmo para quem já corre de tênis. É um estímulo novo”, reforça. Para quem pretende encarar o desafio, Rabelo diz que o estranhamento, no início, será normal. O corpo tende a se adaptar. Porém, isso não dispensa cuidados importantes. “Todos os treinos complementares, como de força, preventivos e propriocepção (capacidade que o corpo tem de avaliar em que posição se encontra para manter o equilíbrio ao realizar esforços) são necessários.” A transição do tênis tradicional deve passar de um de maior suporte de amortecimento para o mais leve (o minimalista), antes de chegar ao contato direto com o solo. “Toda condição nova vai gerar uma necessidade de adaptação do corpo. Sair de um tênis com que se está acostumado diretamente para o descalço será uma ‘agressão’ e haverá a possibilidade de ter uma resposta negativa”, alerta Rabelo. Por fim, o preparador físico recomenda que o corredor comece pela grama ou terra batida, que são tipos de solo mais macios, antes de encarar o asfalto ou cimento – e sempre lembrar do conceito de progressão. O tempo de descanso do corpo, assim como na corrida tradicional, também é fator essencial.

QUEM PODE?

Para o médico do esporte Páblius Staduto Braga, do Hospital Nove de Julho, do ponto de vista fisiológico, correr descalço é bastante positivo. Porém, ele não indica a prática para todos. “A pessoa não pode ter um corpo muito pesado. E não estou falando de indivíduos acima do peso, mas de musculatura e ossos. É preciso um equilíbrio da carga que você fará contra o solo”, lembra. Além de corrida, muitas pessoas estão praticando treinos de musculação ou exercícios livres, como o agachamento, descalças. O médico vê benefícios. “A sensação de solo é gostosa para os pés, massageia. É extremamente positivo para os membros inferiores. Diferentemente da corrida, não há riscos.”

BEM-ESTAR

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2022-04-02T07:00:00.0000000Z

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