No ‘Canal 100’, o futebol ganhava tons de magia
Imagens que construíram nova estética no modo de filmar o esporte estão sendo restauradas
UBIRATAN BRASIL
Atransmissão de jogos de futebol hoje, com câmeras espalhadas pelo estádio, não chega a ser tão emocionante para quem frequentou o cinema entre 1959 e 1986, época em que a exibição do cinejornal Canal 100 era tão (ou mais) aguardado que o filme que viria a seguir.
Com imagens espetaculares, o Canal 100 mostrou a construção de uma nova estética no modo de filmar o futebol, aproximando-a da verdadeira arte. São os originais desse valioso material que a Cinemateca Brasileira vem resgatando desde 2011, em um projeto orçado em R$ 22 milhões para recuperar, catalogar e digitalizar o acervo que contém mais de 20 mil noticiários distribuídos em 8.044 latas de filme em 35 mm.
“Captamos 40% desse total, mas estamos negociando com outras empresas para concluir o trabalho em 2026’’, comenta Maria Dora Mourão, diretorageral da Cinemateca, que já conta com o patrocínio do Instituto Cultural Vale, da Shell e do Itaú, por intermédio da Lei de Incentivo à Cultura.
Até o momento, apenas uma pequena amostra dessa coleção foi digitalizada, mas o objetivo é a preservação integral de um conteúdo que contém ce
nas históricas, como o Fla-Flu de dezembro 1963, que decidiu o Carioca (o empate sem gols deu o título ao Flamengo): foi o jogo de maior público entre clubes na história do futebol, com 194.603 torcedores no Maracanã (177.020 pagantes).
ORIGEM. Criado em 1959 por um flamenguista doente, Carlos Niemeyer (1920-1999), o Canal 100 adotou um formato de cinejornal que já era utilizado por americanos e europeus, mas tornou-se essencialmente brasileiro ao eleger o futebol como seu carro-chefe. Assim, ainda que retratasse momentos decisivos da história contemporânea brasileira (desde a inauguração de Brasília até os comícios pelas Diretas, passando por shows de Elis Regina e de tropicalistas, bossa-novistas e ainda as modificações arquitetônicas do Rio), o que tornava o Canal 100 um produto único era a forma como exibia uma partida de futebol.
“O Canal 100 utilizava um tipo de lente que, apesar de pesadíssima e de ser carregada nos ombros, era capaz de mostrar algo que ninguém que esteve naquele estádio tinha observado”, comenta o cineasta Ugo Giorgetti, diretor dos filmes Boleiros – Era uma Vez o Futebol... e Boleiros 2 – Vencedores e Vencidos. “Um lance que não parecia empolgante era trabalhado com uma bem-sucedida montagem e sonoplastia, tornando as tomadas muito mais interessantes.”
Era essa a intenção de Niemeyer, que não queria aborrecer o espectador do cinema, especialmente aquele que havia visto a partida no estádio. Assim, inovou ao filmar os lances em câmera lenta, o que permitia observar detalhes inacessíveis mesmo para quem tinha visto a reprise do jogo na televisão. Para isso, adquiriu câmeras teleobjetivas de 400 a 600 mm, aparelhagem que nenhuma TV de então dispunha. Niemeyer (primo do famoso arqui
Acervo Serão recuperados mais de 20 mil noticiários, distribuídos em 8.004 latas de filme em 35 mm
teto) contou ainda com uma talentosa equipe de cinegrafistas, formada por Francisco Torturra, Liercy de Oliveira e João G. Rocha. A princípio, o grupo filmava os principais jogos do Campeonato Carioca, no início dos anos 1960. Em pouco tempo, já acompanhava também a seleção brasileira.
Foi o que aconteceu na Copa da Inglaterra, em 1966. E, diante da atuação pífia do Brasil diante de Portugal, cuja vitória por 3 a 1 desclassificou a equipe ainda na fase classificatória, as imagens do Canal 100 traduziam a ira do torcedor nacional, com a seguinte narração de Cid Moreira, locutor oficial do cinejornal: “A seleção estava tonta, a defesa, em pânico, e o ataque, inoperante”.
Mesmo assim, Niemeyer confiou na seleção que disputaria a Copa de 1970 e, endividado, rumou com sua equipe para o México. A conquista do tricampeonato permitiu que ele saldasse as contas e já apostasse em imagens coloridas.
PAIXÃO MAI O R . Ainda que acompanhasse ídolos do esporte como o piloto Emerson Fittipaldi e a tenista Maria Esther Bueno, o futebol interessava mais a Niemeyer, cujo templo sagrado era o Maracanã, onde distribuía sua equipe em pontos estratégicos. O objetivo era filmar de ângulos novos para transmitir a emoção das partidas. Posicionava duas câmeras no fosso do estádio, atrás dos gols, e outra nas cadeiras especiais. O técnico de som ficava na arquibancada. Os cinegrafistas caprichavam no close dos jogadores e em suas pernas, pois Niemeyer sabia que o futebol é um drama disfarçado de esporte e as expressões faciais dos atletas tinham tanta i mportância quanto seus dribles.
“A grande intuição de Nie
Valor do projeto Recuperar, catalogar e digitalizar o acervo do ‘Canal 100’ é trabalho que está orçado em R$ 22 milhões
meyer foi entender que o drama da partida não estava só no campo, mas também no espectador”, observa o cineasta João Moreira Salles, em depoimento publicado no livro Canal 100 – Uma Câmera Lúdica, Explosiva e Dramática, com textos e organização de Claudia Pinheiro e Carla Niemeyer. “Ele foi o primeiro a desviar a câmara para o público. Para o torcedor com o radinho colado no ouvido enquanto via o jogo do Flamengo, na geral. Ali, ele construía uma pequena narrativa, uma pequena história de alguns minutos.”
Logo, o Canal 100 tornou-se um programa obrigatório para fãs. À espera do filme, qualquer sala escura se transformava em arquibancada. As imagens empolgavam também torcedores ilustres, como o tricolor Nelson Rodrigues. “Foi o Canal 100 que inventou uma nova distância entre o torcedor e o craque, entre o torcedor e o jogo, em dimensão miguelangesca, em plena cólera do gol”, escreveu. Em 1986, porém, com o fim da obrigatoriedade de exibição de cinejornais antes dos filmes, o Canal 100 ouviu o apito final. •
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2024-12-19T08:00:00.0000000Z
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