O Estado de S. Paulo

Faltam nove dias

✽ É REPÓRTER DO ‘ESTADÃO’ E OBSERVADOR DA VIDA URBANA

Faltam nove dias. Faltam nove dias para o meu Natal, nove dias para o carnaval, nove dias para o Réveillon, nove dias para aquele que será, daqui por diante, o dia do meu aniversário.

De acordo com o novo calendário de vacinação em São Paulo, divulgado no minuto em que escrevo essa crônica apressada, faltam nove dias para eu receber o beijo mais esperado dos últimos tempos. O beijo da agulha no meu braço, o beijo mais molhado e gostoso de que se tem notícia. O beijo que vai me fazer esquecer a Scarlett Johansson.

Já entrei no modo contagem regressiva. Já tem um círculo no meu calendário, um enorme círculo vermelho destacando o dia 23. Essa é a data que irá me guiar daqui pra frente, como se fosse o dia do meu casamento ou o fim de uma temporada preso. Dia 23 será o dia do primeiro passo rumo ao futuro.

Mesmo que ainda seja necessário tomar todos os cuidados, manter todas as distâncias e usar minha máscara companheira, o próximo dia 23 será o dia em que voltarei a fazer planos. E fazer planos é parte daquilo que nos faz humanos – e que nos mantém em pé e lutando.

Pelo direito de ferver na pista, dançar agarrado ou me acabar em um forró – que chegue logo o dia 23. Pelo direito de me espremer em um show de rock, de me esgueirar até um balcão de bar ou abraçar pessoas desconhecidas – que chegue logo o dia 23. Pelo direito de viajar, namorar ou de espirrar sem que meu coração dispare – que chegue logo o dia 23.

Vou de roupa nova e calça apertada (para dar sorte). Vou de jacaré. Vou de “Viva o SUS”. Vou de “Viva a Ciência”. Vou de “Fora, vocês sabem quem”. Vou de Carmem Miranda se precisar – só não vou de moto porque não sou besta ou negacionista. Quero vídeo no Tik Tok, foto no Instagram, textão no Facebook, thread no Twitter. Quero uma imagem para o meu aplicativo de paquera. Quero, no dia 23, a diversão completa.

Quanto tempo depois de vacinado a gente pode tomar um aperitivo?

Estou pensando em estourar uma champanhe – mas só depois da segunda dose. Estou pensando em ligar para uns contatinhos – mas só depois da segunda dose.

Na verdade, estou pensando em madrugar na UBS, que fica aqui perto de casa. Eles até me conhecem. Já fui perguntar sobre a xepa umas cinco vezes nos últimos 30 dias. Estou ansioso. Sou ansioso. Queria fechar os olhos e acordar no dia 23.

No dia 23, vou tomar um café completo, escolher uma música “pra cima” e me sentir como alguém vivendo em uma propaganda de margarina. No dia 23, quero achar que tudo deu certo ou que ainda vai dar. No dia 23, ninguém vai me tirar o sorriso do rosto. No dia 23, serei o palhaço, o mágico e o malabarista. No dia 23, serei o dono do meu próprio circo.

Por isso, é que eu digo: Vamos nos vacinar, vamos virar essa página. Vamos nos proteger para que a gente possa protestar. Vamos nos vacinar para que a gente mostre que esse não é um país de pangarés. Vamos nos vacinar por amor próprio e por amor ao próximo. Essa pulsão de morte, esse tesão pela infâmia, não nos pertence. Vamos nos vacinar contra a burrice e a mitomania. Vamos nos vacinar contra o gabinete do ódio, contra o tiozão do zap, as milícias digitais (ou analógicas) e os charlatões da medicina. Vamos nos vacinar e dizer sim à vida.

Infelizmente, e isso precisa ser dito, daqui a nove dias, quando chegar o dia da minha vacina, o País já estará com mais de 500 mil vítimas fatais desta doença maldita. Pessoas que, assim como eu, poderiam estar ansiosas e contando os dias pela primeira dose. Mas essas pessoas não tiveram esse direito – que eu e outros amigos na casa dos 40 e poucos anos estamos conquistando agora.

Por isso, dia 23 também será um dia de oração. Por isso, dia 23, será, para mim, o dia de lembrar dos emails não respondidos da Pfizer, dia de lembrar da “gripezinha”, do “e daí?” e das caixas de cloroquina erguidas para o céu como se fossem oferendas a um deus de morte e destruição. Faltam nove dias.

Especial

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2021-06-14T07:00:00.0000000Z

2021-06-14T07:00:00.0000000Z

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