O Estado de S. Paulo

Maratona literária

Sérgio Augusto É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’, ENTRE OUTROS

Chegou ao fim por esses dias a mais surpreendente maratona literária de todos os tempos. Ao longo de 28 anos, cerca de três dezenas de joycemaníacos gramaram e discutiram Finnegans Wake, em sessões mensais com duas horas de duração, na Biblioteca Pública de Venice, a Ipanema de Los Angeles.

Sob a batuta do cineasta experimentalista Gerry Fialka, idealizador da leitura, o grupo encarava duas páginas a cada encontro, que só durante e depois da pandemia deixou de ser presencial, com os recursos do Zoom.

Por mais incrível que pareça, existe meia centena de clubes de leitura devotados ao inacessível romance de Joyce, dentro e fora dos EUA, mas só o de Fialka dedicou à empreitada tanto tempo. O de Zurique, na Suíça, fundado em 1984, já escrutinou o livro três vezes. A primeira leitura consumiu 11 anos. Joyce, por coincidência, morou em Zurique durante a Primeira Guerra Mundial e lá morreu com a Segunda em andamento.

Em matéria de Joyce, o máximo a que chegamos aqui foram os grupos de leitura e discussão em torno de Ulisses, acrescidas das celebrações, em 16 de junho, do folclórico Bloomsday.

Até ousamos traduzir trechos e mesmo a totalidade de Finnegans Wake, mas não o cultuamos e autopsiamos com a mesma pertinácia.

Nem sequer comemoramos em data fixa o “despertar” (wake) ou o “nascimento” (e o fim) de Finnicius, batismo que nestas paragens o velho Finnegan ganhou de Donaldo Schüler, até porque nunca se instituiu um Finnegansday, para os devidos finns. O 4 de maio assinala apenas o dia em que o livro foi publicado, em 1939.

Enigma em forma de romance, tomou 17 anos da vida de Joyce. Muitos que o perlustram pela primeira vez acreditam estar diante de uma antologia de erros tipográficos. Lapsos propositais, criativos, cuja decifração às vezes requer do leitor (idealmente insone, segundo o autor) uma erudição quase tão ecumênica quanto a exigida pelo restante da narrativa, de estrutura circular e repleta de referências abstrusas e calemburgos poliglóticos, que, já de cara, nos põe diante de uma palavra obscura (“riverrun”) e termina, 328 páginas depois, com um artigo definido (“the”), que nos remete ao começo do romance. Haja esperteza, haja expertise.

Só entre nós “riverrun” gerou o rosiano “nonada” de Grande Sertão: Veredas e também o Riverão Sussuarana, de Glauber Rocha. Os irmãos Campos (Haroldo e Augusto), os primeiros a transcriar fragmentos de Finnegans Wake em português, já lá se vão 66 anos, traduziram o neologismo como “ricorrente”. Schüler optou por “rolarrioana”, e Dirce Waltrick do Amarante por “correorrio”.

Só li trechos, confesso. Mas “guilt-free”, para usar a língua de Joyce, uma das múltiplas, entre vivas e mortas, utilizadas por ele no romance. •

CULTURA & COMPORTAMENTO

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2023-11-19T08:00:00.0000000Z

2023-11-19T08:00:00.0000000Z

https://digital.estadao.com.br/article/282303914871638

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