Alucinações no conteúdo e na forma
Em ‘Camaleão Russo’, Kirill Serebrennikov narra história do poeta Eduard Limonov, investindo em recursos cênicos pouco ortodoxos
LUIZ ZANIN ORICCHIO
Eduard Limonov foi um homem múltiplo e paradoxal. Seu biógrafo francês, Emmanuel Carrère, o descreve em um parágrafo breve: “Limonov foi delinquente na Ucrânia; ídolo do underground soviético; mendigo e depois mordomo de um bilionário em Manhattan; escritor da moda em Paris; soldado perdido nos Bálcãs; e agora, na imensa bagunça do pós-comunismo, velho chefe carismático de um partido de jovens desesperados”.
Limonov foi isso e muito mais. Sua biografia foi filmada pelo cineasta Kirill Serebrennikov e ganhou, no Brasil, o título de Limonov: o Camaleão Russo, em cartaz nos cinemas. Quem interpreta o personagem é o britânico Ben Whishaw. É pouco autêntico ver esse personagem, de fato internacional, se expressando em inglês o tempo todo. Como viveu muito em Nova York, nessa parte o inglês é ok. Mas o que dizer quando conversa com seus pais? Soa falso.
Vindo do teatro, Serebrennikov tem o dom da encenação (que se expressa em magníficos planos-sequência) e também dá pouca bola para o realismo. Essa liberdade tem suas vantagens, apesar do evidente apelo comercial de fazer a obra falada em inglês para facilitar a distribuição internacional. Usa recursos cênicos pouco ortodoxos porém eficazes.
PORTAL. Por exemplo, como Limonov viveu em muitos lugares, o diretor faz com que o personagem passe de uma cidade a outra (e de um tempo a outro) com a facilidade de quem atravessa uma simples porta. Como se esta fosse um portal para outra dimensão. Funciona. O ponto forte do filme é que Serebrennikov, na forma, mantém o tom alucinado do personagem.
Essa temperatura alta e o padrão visual frenético permitem desenhar essa personalidade tanto fascinante como duvidosa, porém sempre lisérgica. Limonov foi um profeta ou um farsante? Revolucionário ou fascista? De seus amores het e r os s e - xuais, até a experiência homossexual com um mendigo em Manhattan; das mudanças políticas bruscas à prisão; das entrevistas sempre provocativas à fundação de um partido dito bolchevique, cuja bandeira é quase idêntica à do nazismo, trocando apenas a cruz gamada pela foice e o martelo – o que fica de Limonov? Carrère, em sua biografia, deixa o leitor tirar suas próprias conclusões. O filme faz o mesmo. Acompanhamos o personagem, fascinados, porém sempre com um pé atrás. Ou os dois pés. Mas não abandonamos o filme.
Limonov (seu nome real era Eduard Veniaminovich) nasceu em Gorky em 1943 e morreu em Moscou em 2020. Ou seja, viu a luz em plena 2.ª Guerra Mundial, atravessou a guerra fria quando jovem e chegou à maturidade e velhice imerso na confusão ideológica pós-queda do Muro de Berlim (1989) e fim da União Soviética (1991). Difícil imaginar personagem tão complexo em outro período histórico como este conturbado “século breve”, como o definiu o historiador Eric Hobsbawm. Quem foi Limonov? Você decide, leitor. •
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2025-04-23T07:00:00.0000000Z
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