O Estado de S. Paulo

Humor e ódio na esfera pública digital

Por Elias Thomé Saliba, professor titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP)

Ainda que levemos em conta o alto potencial de polissemia inerente a toda produção cômica, é preciso constatar que no mundo digital da atualidade, piadas e chistes são apresentados como humorísticos dentro de contextos de extrema polarização ideológica, de ressentimento e de ódio e, no limite, de uma radicalização do fanatismo racista. Ora, como diversos estudos vêm analisando, sabemos que esse ambiente hostil e polarizador da mídia digital é inerente às novas gerações de algoritmos, os quais incrementam e estimulam em escala veloz e cada vez mais disseminada, a chamada “economia da atenção”.

De qualquer forma, esse humor hostil que prospera nas redes sociais se utiliza da ideologia positivista do riso para elidir o que realmente ele incentiva, ainda que de forma velada, que é acentuar a diferenciação social positiva de um grupo em relação a outro, arregimentando e reunindo, na concisão da piada e do estereótipo, todos os aspectos negativos. Por trás dessa cortina positivista de que se trata “apenas de uma piada”, está o reforço de uma percepção de superioridade por parte do emissor ou do produtor da anedota cômica.

Claro que o argumento de que possam haver ligações intrínsecas entre o preconceito extremo e o humor não é novo e já apareceu muito antes do advento do universo digital. Sartre sugeriu, em famoso ensaio, que os antissemitas achavam divertido serem antissemitas e sentiam prazer na “alegria de odiar”. Adorno e Horkheimer, numa passagem do seu lúgubre Dialética do Iluminismo, descrevendo os protestos dos antissemitas em reuniões políticas fascistas chegaram a designá-los como “riso organizado”. Argumentaram que a razão do prazer era que o fascismo “permite o que geralmente é proibido” e, assim, apoiado pela legitimidade da ideologia, o odiador fica livre de restrições normais e pode zombar de vítimas desumanizadas e indefesas. Noutros termos, tais argumentos já apontavam para os vínculos entre o ódio político extremo e o domínio das piadas.

Lembre-se, ainda, de que a própria nomenclatura do humor ofensivo ou da atitude de “rir da desgraça alheia” é uma designação que as sociedades elidem ou recalcam, não existindo uma palavra específica e única para designar tal tipo de riso.

Tiffany Smith argumenta o quanto gostamos de saborear aquele prazer risonho com o fracasso e a inferioridade dos outros, mas quando nos pedem para nomear com todas as letras esse prazer, nossa linguagem empaca e recai num silêncio hipócrita. Para cobrir tal recalque, a língua alemã cunhou a palavra schadenfreude, a qual num único e singular vocábulo reúne schaden (dano) e freude (alegria) significando “alegria ou prazer com o dano ou a desgraça alheia”. Aqui, temos um exemplo de como a sociedade atual, que naturaliza o riso sempre como positivo, recalca até mesmo a designação desse tipo de riso.

Meu principal argumento é que o humor na forma de ridículo, quando não de insulto, está no coração da vida social contemporânea –, mas tal argumento nunca foi muito enfatizado nas principais teorias do humor, as quais, em cada época, iluminam apenas o efeito catártico e a neutralidade da incongruência, obscurecendo a agressividade. É nesse sentido que precisamos de uma abordagem histórica das teorias sobre o riso e dos seus fundamentos ideológicos.

A FUNDO

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2024-11-21T08:00:00.0000000Z

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