O Estado de S. Paulo

Livro revive trajetória de Harvey Weinstein, da glória para a prisão

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU ALEXANDRA JACOBS

Com seu olhar severo, o autor Ken Auletta traz à memória, em ‘Hollywood Ending’, um cenário de abusos e rivalidades

Como você pode imaginar, não há muitas passagens divertidas em Hollywood Ending, a nova biografia de Ken Auletta sobre a vida de Harvey Weinstein, o magnata do cinema que foi condenado por estupro e outro crime sexual em Nova York e está aguardando julgamento por novas acusações na Califórnia – ainda não há previsão de tradução em português. Quando Auletta caracteriza o relacionamento de Weinstein com seu irmão Bob como “digno de Shakespeare”, ele está colocando a história diretamente na prateleira das tragédias. Mas aí o astro da Broadway Nathan Lane faz uma breve aparição, como bobo da corte dando cambalhotas no palco de Coriolano.

O ano era 2000 e o capital cultural de Weinstein talvez estivesse no auge. Ele ainda dirigia a Miramax, o prestigioso estúdio que ele e Bob fundaram em 1979, mesmo que agora sob a supervisão incongruente, mas lucrativa, da Disney. Ele tinha acabado de fundar a revista Talk com a editora Tina Brown, à época a mais ágil marionetista da alta e baixa cultura de Nova York. Ele estava circulando entre políticos, sendo um dos anfitriões de uma luxuosa festa de aniversário e arrecadação de fundos para a então candidata ao Senado Hillary Rodham Clinton, no Roseland Ballroom. E não gostou de algumas das piadas que Lane, o apresentador dos sonhos de qualquer um, escreveu para a ocasião.

SARCASMO. “Vou acabar com a sua carreira”, Weinstein ameaçou, na releitura de Auletta, “encostando” o ator contra a parede. “Você não tem como me machucar”, Lane retrucou. “Eu não tenho carreira no cinema.” No palco, Lane disse com sarcasmo: “Vou fazer todas as piadas que Harvey Weinstein queria que eu cortasse”.

Não foi a última vez que o teatro, de certa forma, venceu a batalha contra o meio preferido do produtor. Auletta acompanhou todos os dias do julgamento de Weinstein em 2020 e aqui narra a experiência em quatro capítulos. “Julgamentos não são filmes, criados em condições controladas e sujeitos a revisão na sala dos editores”, escreve ele. “São produções ao vivo, dependem da química de seus participantes e de um tanto de sorte.”

Os livros, aos quais Weinstein é comprovadamente afeiçoado – seu pequeno império de mídia incluía uma editora –, podem ser como filmes. Auletta efetivamente – e talvez até um pouco exageradamente – enquadra este na longa sombra de Cidadão Kane. Auletta é Jerry Thompson, claro, o repórter que procura o Rosebud de seu anti-herói – o misterioso objeto desaparecido que explicaria sua personalidade. Mas ele é, também, o cidadão Kane magnânimo e paternalista quando incentiva seu chefe na The New Yorker, David Remnick, a publicar a investigação do jovem jornalista Ronan Farrow sobre os crimes de Weinstein. Jodi Kantor e Megan Twohey, do The New York Times, divulgaram a história cinco dias antes da publicação do artigo de Farrow.

O bem relacionado Auletta se baseia no trabalho desses jornalistas e em suas próprias entrevistas com grandes personagens, até mesmo muitas horas certamente fascinantes com o irmão Bob. Quanto a Harvey, ele envia algumas respostas concisas por e-mail, e seus representantes discutem sobre possíveis condições de entrevista antes de simplesmente ignorarem seu biógrafo.

Mas Hollywood Ending também explora um extenso perfil que Auletta escreveu sobre Weinstein 20 anos atrás. Naquela época, ele tinha ouvido falar dos crimes sexuais de Weinstein, um segredo aberto desde muitos anos, mas não conseguira gravar registros de vítimas e, portanto, se concentrara no bullying e nos apetites prodigiosos de seu retratado. Kane é famoso por suas cenas de café da manhã. O perfil de Weinstein o mostrava devorando junk food: M&MS de amendoim, batatas fritas mesmo durante a conversa com um advogado de defesa – o ketchup “criava manchas que pareciam de sangue” –, Mentos nos dias de julgamento e, mais recentemente, contrabando de chocolate Milk Duds na cadeia.

REPUTAÇÃO. A reputação de agressor sexual de Weinstein começou cedo, quando ele era promotor de shows em Buffalo, Nova York. Conforme foi envelhecendo, sua influência foi diminuindo – toda a indústria cinematográfica diminuiu – e ele passou a procurar presas mais jovens, de uma geração que “passava cada vez mais tempo livre nas redes sociais, como o Facebook”, lembra Auletta, “em vez de ir ao cinema”.

Em 2015, depois que o produtor, então na casa dos 60 anos, saltou do sofá de seu escritório para cima de Ambra Battilana Gutierrez, finalista do Miss Itália, de 22 anos – “ele atacou seus seios como se estivesse num bufê”, como diz Auletta –, a jovem fez o que muitas mulheres que estiveram em sua posição relutavam a fazer, com medo do enorme poder de Weinstein: chamou a polícia. A tentativa de um publicitário de desacreditar Gutierrez foi recebida com gritos indignados de que ela estava sofrendo slut-shaming – ou seja, sendo estigmatizada por um suposto comportamento. A quarta onda do feminismo chegara com grande estrondo, varrendo Weinstein e sua turma.

E, no entanto, o presidente do júri que condenou Weinstein, afirma Auletta, citou o depoimento e o comportamento de testemunhas do sexo masculino, não de vítimas do sexo feminino – “sugerindo que ‘acreditar em mulheres’ era uma tarefa arriscada”. Mas a voz de uma mulher-chave acabou soando bem alto.

‘MOMMA PORTNOY’. Em sua busca por Rosebud, Auletta encontra, por falta de melhores explicações, a mãe dos irmãos Weinstein: Miriam, mulher de cabelos ruivos e temperamento explosivo que serviu de inspiração para o nome da empresa (junto com o pai, Max, pacato ourives de diamantes que morreu de ataque cardíaco aos 52 anos). Um amigo de infância disse a Auletta que Harvey se referia a Miriam como “Momma Portnoy”, homenagem à estridente personagem de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth.

Assim como havia um “quinto Beatle”, também existia um grupo de executivos da Miramax apelidados de “terceiro irmão” – homens leais que cooperavam com as práticas de assédio – e também uma espécie de “sistema de transporte para canalizar mulheres” até as suítes de hotel de Weinstein.

Se você não se interessa pelos detalhes repugnantes do que aconteceu nessas suítes, nem nas enrolações dos acordos de confidencialidade, talvez prefira uma das recomendações do protagonista desgraçado de uma era mais elegante que ele adorava, a autobiografia de Elia Kazan, A Life. Ou o livro que Weinstein muitas vezes levava consigo durante a preparação para o julgamento: The Brothers Mankiewicz, de Sydney Ladensohn Stern. Herman Mankiewicz é corroteirista de Cidadão Kane; seu irmão, Joe, escreveu A Malvada.

Recordar esses grandes filmes – e até mesmo alguns dos dias de glória da Miramax nos anos 1990 – parece desalentador, pois as imagens, parafraseando o filme O Crepúsculo dos Deuses, continuam encolhendo. Acompanhar a lenta ascensão e queda de Weinstein, mesmo que pelas mãos hábeis de Auletta, pode parecer ainda mais desanimador, como andar naquelas montanhas-russas barulhentas de parquinhos arruinados. •

“Julgamentos não são filmes, criados em condições controladas e sujeitos a revisão. São produções ao vivo, dependem da química dos participantes e de um tanto de sorte” Ken Auletta Escritor

CULTURA & COMPORTAMENTO

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2022-07-14T07:00:00.0000000Z

2022-07-14T07:00:00.0000000Z

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