Boom de crianças atípicas, um desafio
Diagnóstico cresce, a estrutura não
LUCIANA GARBIN
Nunca houve tanto diagnóstico de transtorno neurológico infantil. Em apenas um ano, cerca de 200 mil crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) foram matriculados em salas de aula comuns no Brasil, um aumento de 50% segundo o Censo de Educação Básica. Nos Estados Unidos, estimativa do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) apontou 1 em cada 36 crianças com autismo – em 2000, o registro era de 1 por 150. No caso do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), o cálculo é de que atinja de 5% a 8% da população mundial.
Mais do que uma questão para as famílias, números como esses refletem um novo desafio nos colégios, que só deve crescer neste ano: o de como lidar com salas de alunos cada vez mais diversas e complexas.
Hoje se sabe muito melhor do que décadas atrás sobre as chamadas crianças atípicas, com necessidades especiais ou distúrbios do desenvolvimento que demandam adaptações no ambiente educativo para que aprendam melhor. Mas estão as famílias e os colégios preparados para ir além dos laudos e promover as adaptações necessárias para que elas se desenvolvam melhor?
“Existe a questão da ‘criança com laudo’ de uma maneira positiva e de uma maneira negativa”, observa a neuropsicopedagoga clínica Ingrid Garrido. “Positiva é quando a escola entende: ‘Olha, essa criança tem um laudo, o que é melhor pra ela? Ou quando a família recebe um diagnóstico e pensa: ‘Que terapia é mais apropriada para ela se desenvolver?’. Mas tem também o tipo de percepção negativa quando alguém diz: ‘Ah, fulaninho fez isso? É, mas ele tem laudo, né? Não pode nem reclamar com o pai...’”
Há 12 anos lidando com crianças atípicas, Ingrid estima já ter atendido milhares de casos de todos os tipos e idades. E atribui o aumento de diagnósticos nos últimos anos a três fatores principais: o fato de as famílias estarem hoje mais bem informadas sobre o assunto e buscarem mais ajuda especializada; o aumento de pesquisas na área; o crescimento no número de pessoas especializadas em identificar transtornos neurológicos.
Com a pandemia da covid19, ela afirma também ter notado um olhar mais atento e próximo para os filhos, bem como a explosão do uso de telas por crianças, que pode ter contribuído para atrasos no desenvolvimento de muitas delas. Houve ainda, segundo Ingrid, uma revisão no manual de diagnósticos e a inclusão no espectro do autismo de transtornos antes considerados mais leves. Todo esse cenário fez os números crescerem – e os desafios para tornar o trabalho mais efetivo sobressaírem. A seguir, alguns deles.
DESAFIO 1. NEM SEMPRE O DIAGNÓSTICO ESTÁ CORRETO
Para chegar à conclusão de que o cérebro de uma criança funciona diferentemente do de outras crianças, de maneira atípica, é necessária uma série de avaliações neuropsicológicas com apoio multidisciplinar. Cada transtorno tem características próprias e pode levar a diferentes graus de comprometimento. O problema é que, como às vezes mais de um tipo coexiste e tem desdobramentos parecidos, ele pode ser confundido por profissionais nem sempre especializados, levando a diagnósticos errados e a prejuízos para pacientes e famílias. Além de consequências emocionais, o diagnóstico errado pode atrasar o uso de terapias adequadas e reduzir seu sucesso.
DESAFIO 2. NEM SEMPRE A FAMÍLIA ACEITA O DIAGNÓSTICO
A maneira de os pais encararem o transtorno dos filhos varia. “Muitas vezes chega uma família aqui e tem pai que nem sobe, diz que a mãe é louca e está vendo pelo em ovo”, conta Ingrid Garrido. “Tem mãe que vem, paga uma nota na avaliação e, quando sai o diagnóstico, não aceita, não conta pra ninguém, não conta para a escola. E é ruim quando não conta pra escola porque, se muita escola já não está preparada sabendo, imagina sem saber”, comenta a especialista.
DESAFIO 3. NEM SEMPRE A ESCOLA FAZ A ADAPTAÇÃO CORRETA PARA ACOLHER A CRIANÇA E AJUDÁ-LA EM SEU DESENVOLVIMENTO
Toda criança atípica tem direito a adaptação escolar para que consiga acompanhar pedagogicamente sua turma. Isso inclui não só casos de TDAH e Espectro Autista (TEA), como de Transtorno do Processamento Auditivo Central (TPAC), de transtornos de aprendizagem – dislexia, discalculia, disortografia, disgrafia – e de síndromes, como a de Down. Laudos de neuropediatras e neuropsicólogos costumam vir com recomendações de, por exemplo, onde a criança deve se sentar na sala de aula para ter mais atenção, como deve ser sua prova, os direitos dela a um professor leitor, a gravador, a sair mais vezes para ir ao banheiro. Mas nem sempre a escola faz essa adaptação. Por lei, essas crianças também têm direito a um profissional de apoio na sala de aula. Especialistas defendem que seja um acompanhante terapêutico (AT), que ajude a criar estratégias de aprendizagem. Quando disponibilizada, nem sempre, porém, essa AT é formada em Pedagogia, por exemplo, e especializada em transtornos. “O papel da escola é ensinar de maneira que a criança aprenda. Esse negócio de a professora colocar todo mundo na cadeira, passar uma fórmula e se o aluno não atingir a nota ele é que é errado não é a essência da escola”, afirma Ingrid. “O cérebro da criança atípica não funciona desse jeito. Então é essa criança que vai sempre para a coordenação, é essa que vão achar que é mal-educada, não entendem a parte do transtorno. Vejo muitas escolas despreparadas e professores despreparadíssimos.”
DESAFIO 4. NEM SEMPRE A ESCOLA TRABALHA A INTE
Rápido demais
O excesso de telas impôs graus de complexidade nesse cenário de desafios e alguns transtornos podem ter a ansiedade como comorbidade
GRAÇÃO DAS CRIANÇAS TÍPICAS E ATÍPICAS
Casos de bullying contra crianças atípicas infelizmente não são raros, assim como os casos de falta de acolhimento pela turma. “Tem crianças que não sabem o que é o transtorno e xingam os coleguinhas. Já ouvi algumas vezes: ‘Ah, cala boca, seu autista. A criança muitas vezes nem sabe do que estão falando.” Para Ingrid, isso reflete outro erro no ambiente escolar, o de não explicar de modo simples a todas as crianças o que é um transtorno neurológico e não trabalhar a questão do acolhimento.
DESAFIO 5. NEM SEMPRE ESCOLAS E FAMÍLIAS SE ENTENDEM De um lado, famílias de crianças atípicas reclamam que a escola não está fornecendo a educação preconizada pela lei. De outro, professores tentam lidar com diferentes diagnósticos numa mesma classe que normalmente já tem desafios e conflitos e veem uma supervalorização dos laudos, que passam a definir “quem a criança é”. Tudo isso muitas vezes sem formação adequada. Nesse embate, perdem mais as crianças atípicas, que ainda têm de enfrentar os rótulos trazidos pelo diagnóstico.
DESAFIO 6. NEM SEMPRE A SOCIEDADE ENTENDE O DIAGNÓSTICO
A alta no número de laudos tem levado a uma desconfiança sobre “excesso” de diagnósticos e falta de limites e de família. Mas, para Ingrid, “hoje as pessoas falam que tem muito porque antes não tinha nenhum”. “E por que antes não tinha nenhum? Por que há 40 ou 50 anos ou você tinha um caso muito grave e era chamado de retardado mental ou você tinha muitas dificuldades – hoje seria o autista leve ou TDAH –, mas conseguiu dentro das dificuldades tocar o barco – casar, se formar. Pode ser criança que tinha algum transtorno, mas a mãe não foi buscar ajuda e, mesmo se buscasse, o médico também não ia ver. As pessoas falam por falta de conhecimento, vejo muito mais crianças que não têm diagnóstico do que excesso de diagnóstico.”
DESAFIO 7. ALÉM DE TUDO ISSO, TEM AS TELAS...
O mundo digital – e seu monte de telas – impôs graus de complexidade nesse cenário já pra lá de desafiador. “A questão do transtorno de ansiedade está sendo agravada demais pelas telas”, resume Ingrid. “A criança precisa de uma carga constante de dopamina Quando a gente tinha 10 anos, as músicas tinham 3 minutos e meio, hoje têm um minuto e meio porque as crianças não ficam mais dançando a mesma coreografia, não cantam mais. Tudo tem de ser muito rápido.” Para complicar, alguns transtornos podem ter como comorbidade a ansiedade infantil. •
“Tem mãe que vem, paga uma nota na avaliação e, quando sai o diagnóstico, não aceita, não conta pra ninguém, não conta para a escola”
“O papel da escola é ensinar de maneira que a criança aprenda. A professora colocar todo mundo na cadeira, passar uma fórmula e, se o aluno não atingir a nota ele é que é errado não é a essência da escola”
Quando a gente tinha 10 anos, as músicas tinham 3 minutos e meio, hoje têm um minuto e meio porque as crianças não ficam mais dançando a mesma coreografia, não cantam mais. Tudo tem de ser muito rápido”
Ingrid Garrido Neuropsicopedagoga
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