Mulheres separadas por um século, mas unidas pela História
Livros permitem aproximação entre a Condessa de Barral e Aimée de Heeren
AURORA FORNONI BERNARDINI AURORA FORNONI BERNARDINI É ESCRITORA, TRADUTORA E PROFESSORA TITULAR DA USP NO DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS ORIENTAIS E NA PÓS-GRADUAÇÃO NO DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA
Orecente livro do jornalista Delmo Moreira, a biografia A BemAmada: Aimée de Heeren, A Última Dama do Brasil, vai suscitando, à medida que se procede a leitura de sua vida, às vezes surpreendente, sempre interessante, uma série de coincidências com aquela que foi a primeira grande dama do Brasil: a Condessa de Barral.
Filhas de famílias da sólida burguesia – uma de donos de engenho da Bahia, outra do Sul do País, de amigos do presidente –, ambas foram o grande amor de chefes supremos da nação: Luísa Margarida de Barros Portugal (1816-1891), de dom Pedro II; Aimée Sotto Maior de Sá (1913-2006), de Getúlio Vargas. Um século as separa, e nesse século, quantas mudanças! Há, entretanto, semelhanças notáveis, especialmente no que se refere ao comportamento delas.
Aimée tinha uma irmã caçula, Vera, que, como ela, foi educada na arte da sedução. Francês, dança, esporte, mas, principalmente, moda. As toaletes das duas eram impecáveis. A família mudou-se em 1920 para o Rio, que então contava um milhão de habitantes (o pai era representante comercial) e foi acolhida pela família Simão Lopes, de estancieiros gaúchos amigos de Getúlio Vargas. A mãe fez amizade com uma socialite de Santa Teresa, Laurinda Santos Lobo, que influenciava a política e a cultura, e que iniciou as jovens na sociedade “importante”. Poucos anos mais tarde, Aimée, para se ver livre do controle da mãe, que zelava ardorosamente por sua reputação ilibada, aceitou a corte do rebento dos Simão Lopes, Luís, com quem se casaria em 1932. Conforme confidenciou mais tarde a amigas, a lua de mel foi um desastre.
ENGENHO. Um século antes, Luísa e seu irmão Domingos eram educados pela mãe, d. Maria do Carmo, e pelo pai, Domingos Borges de Barros, formado em filosofia em Portugal, senhor abolicionista de um engenho de açúcar, poeta, tradutor do grego e do latim e diplomata, representante na França de “um império verde e imaturo”. Infelizmente, em Paris, morreram o filho e a mulher, que não resistiu ao terceiro parto, na tentativa de preencher a lacuna deixada pelo filho morto. Antes de deixar a França e voltar ao Brasil, onde, além de cuidar do engenho, ocuparia uma cadeira no Senado, Domingos realizou mais um feito que haveria de importar na vida futura da filha.
A ele se deve haver encontrado numa casa aristocrática ligada aos Beahuarnais, a de Leutchenberg, a segunda mulher para d. Pedro I, a arquiduquesa Maria Amélia. Conforme se sabe, a reputação conjugal de d. Pedro I era péssima: nenhuma princesa (das dez contatadas) aceitava se casar com ele, que havia maltratado a cônjuge d. Leopoldina, recém-falecida, e tinha um grande número de filhos bastardos. Mas a família de Maria Amélia aceitou, e d. Pedro I, que gostou da jovem, ficou muito reconhecido a Domingos, dando-lhe o título de visconde de Pedra Branca.
A família da arquiduquesa ficou também muito agradecida: ela era o primeiro membro da família Bonaparte que subia a um trono, depois da queda de Napoleão, em 1815. Mais tarde, a gratidão que os Behauarnais e os Bonaparte sentiam por Borges de Barros será importante na vida de Luísa que, em suas idas e vindas Brasil/França, aprenderá, junto a eles, as regras da etiqueta, a diplomacia, a malícia e a arte da conversação, a causerie, que tanto vão encantar d. Pedro II.
Contristado com a França, onde perdera dois entes tão queridos, Domingos voltou ao Brasil. No navio trava amizade com o conde de Saint-Priest, ministro da França no Brasil, e com seu jovem primo, Eugênio, visconde de Barral. “As Parcas e as Musas começavam a embaralhar os fios do destino de Luísa”, diz Mary Del Priore, a historiadora autora da excelente biografia Condessa de Barral: A Paixão do Imperador ( Objetiva, 2008). Isso porque, desobedecendo ao pai que a havia prometido a um velho ministro do reino, o conde de Abrantes, Luísa – decidida e independente – escolheu o jovem Eugênio de Barral como marido. Na vida dura no engenho, Luísa cavalgava, cuidava da disciplina dos escravos e usava espingarda, mas as finanças não batiam. E, a um certo momento, o casal e o filhinho Dominique resolveram voltar à França. Mas Eugênio acabaria voltando só, pois Luísa – recomendada por Francisco, príncipe de Joinville, filho do imperador da França Luís Felipe I de Orléans (1773-1850) e casado com Francisca, a irmã bonita de d. Pedro II, de quem Luísa havia sido dama de companhia – foi convidada para ser aia das filhas do imperador do Brasil, Isabel e Leopoldina.
Em decreto de 1856, d. Pedro II estabelece os honorários de 12 contos anuais, carruagem
Independência Aimée (à esquerda) foi amante de Getúlio Vargas e recusou qualquer ajuda financeira do presidente
e residência no Paço, conforme Luísa havia solicitado. A quantia daria para ir levando o engenho enquanto ela e o filho Dominique conviveriam com a realeza e o marido Eugênio continuaria a cuidar de seus negócios entre Brasil e França, onde viria a morrer em 1868.
A vida na corte brasileira (até 1865, quando foi combinado o casamento das princesas) é outro longo e apaixonante capítulo à parte, que culmina com o amor correspondido (e oculto), que duraria a vida inteira (ambos morreram no mesmo ano de 1891), de d. Pedro II pela Condessa de Barral, que, aos poucos, passou a ter influência nas nomeações e nas amizades do imperador.
Embora Teresa Cristina, a imperatriz – com quem se casou d. Pedro por procuração e por quem nunca se sentiu atraído – tivesse mais do que simples suspeitas a respeito, a relação só foi descoberta pela imprensa abusada duas décadas mais tarde (meados de 1880) e por conspiradores republicanos, graças à delação do funcionário de confiança da corte, envolvido em um roubo de joias, que tivera o encargo de proteger a intimidade de ambos, já no fim do reinado de d. Pedro II e quando Luísa havia retornado ao Brasil por um breve período, para o casamento do filho, no Rio.
Pedro II estava às voltas com as complicações políticas que haveriam de levá-lo ao exílio em 1889, mas ainda realizou uma viagem à Europa em 1888, acompanhado pela mulher Teresa Cristina, em tratamento de saúde, onde – sempre apaixonado – encontrou Luísa e soube que ela, embora devota dos santos da religião católica e expiando em preces e atos de filantropia as culpas do passado, guardava a lembrança de sua experiência no Paço como uma das melhores de sua vida.
CAMPANHA. No século seguinte, Luís Simões Lopes esteve envolvido na campanha getulista de 1930, juntamente com o pai Ildefonso, que era vicepresidente e tesoureiro da Aliança Liberal (assim se chamava a frente de apoio a Getúlio). No fim do ano, um crime político uniu mais ainda as duas famílias: Ildefonso, em confronto com os partidários da oposição nas calçadas em torno da Câmara do Rio, matou com quatro tiros o pernambucano Sousa Filho, que havia sacado um punhal. Pai e filho ficaram presos no quartel da Polícia Militar, mas, após receberem a visita de Getúlio, num julgamento rápido, acabaram absolvidos. O estado maior revolucionário que tomara a capital gaúcha no começo de outubro chegaria depois de 20 dias à Central do Brasil, no Rio, “com o novo presidente carregado nos braços da multidão até a saída da plataforma”.
Simão Lopes filho passou a trabalhar no Palácio do Catete, encarregado por Getúlio de botar ordem na casa. Pouco tempo depois, já casado e nomeado chefe de gabinete, passou a frequentar, com a mulher, a casa do presidente. Getúlio, casado com Darci (que, parece, costumava fechar os olhos quanto a certas aventuras galantes do marido com artistas do teatro de revista e cantoras de rádio), encantou-se pelo charme, savoir-faire e beleza de Aimée, coma qual iniciou, secretamente, um relacionamento.
Ela, discretíssima quanto à sua vida pessoal, jamais falou sobre essa relação que, descoberta pelo marido, levaria a uma separação em 1938 e, dentro de pouco tempo, também à partida dela para a Europa. (Eugênio não se separaria, porém, de Vargas. Continuaria trabalhando por ele até 1945, casaria de novo e teria quatro filhos.)
Mesmo muitos anos depois de sua partida, sabe-se, pelos diários de Getúlio, nos quais Aimée aparece 29 vezes, que ele se referia a ela como “a bem-amada” e “a criatura que está sendo todo o encanto de minha vida”. “Sou uma senhora, tenho família, a quem podem interessar essas cousas?”, ela dirá aos curiosos.
Bem-amadas Há, entre as duas, semelhanças notáveis, especialmente no que se refere ao comportamento pessoal
O encanto de Getúlio por ela duraria – apesar de todas as vicissitudes políticas que a História relata – praticamente até o final de sua vida. Em 1952, foi organizada por Assis Chateaubriand (na época apaixonado por Aimée) uma grande festa no castelo de Corbeville, em Paris, em que Aimée, num quadro-vivo, era uma das protagonistas. A essa festa compareceu Getúlio, com mais de cem convidados brasileiros para homenageá-la.
Amplamente explorada por Carlos Lacerda, acérrimo inimigo de Vargas, que na Tribuna da Imprensa atribuía a Getúlio o gasto de “205 mil dólares numa farsa em Paris (...) ultrajante diante das dificuldades com que luta o povo francês e desgraça que aflige o brasileiro”, sua presença na festa já seria uma das peças da conspiração (descrita em Agosto por Rubem Fonseca) que levaria Getúlio ao suicídio, em 1954.
COINCIDÊNCIA. Mas voltemos às bem-amadas. Livre, descasada, partindo para Paris, onde a esperava a irmã Vera, casada com um lorde e muito bem relacionada com o beau monde, Aimée diz haver recusado o montante que pretendeu lhe enviar Getúlio para reconstruir sua vida. Notável é a coincidência com a Condessa de Barral, que, ao retornar à França em 1865, devolveu a quantia que lhe havia destinado o imperador para seu futuro sustento.
Barral ficaria viúva três anos depois, e rica, ao herdar a fortuna do marido, enquanto Aimée, tendo-se mudado de Paris para Nova York nos prenúncios da 2.ª Guerra e já tendo aparecido nas páginas de moda da Vogue americana como uma das dez mulheres mais elegantes do mundo (segundo a revista Time), encontraria, durante férias em Palm Beach, o milionário Rodman de Heeren, com quem se casaria em 1941 e com o qual teria uma filha, Cristina, esconjurando para sempre qualquer problema financeiro.
Se no século de Luísa o sexo era tabu, e ela mesma considerava pecado qualquer relação extraconjugal, no mundo de Aimée a questão já era tratada de modo bem diferente. “Aimée costumava provocar as amigas casadoiras com uma ironia: ‘Amor não tem nada a ver com o casamento. Casamento é um acordo de interesses’. E, na plena liberdade que se concedia, estava a do sexo, que, segundo ela, ‘fazia bem à saúde’.”
Resta ver o legado de ambas as bem-amadas para o Brasil, além de sua estimulante memória. Conforme foi esboçado, Luísa, além de haver sido, na corte francesa, exemplo de uma estimadíssima “generala”, modificou o comportamento e o pensamento da corte brasileira, não apenas por sua relação com d. Pedro II, mas, sendo ela mesma, como o pai, a favor da abolição da escravatura, pela influência certamente exercida sobre a princesa Isabel, que viria a sancionar a Lei do Ventre Livre.
Por outro lado, talvez se deva ao impulso de Aimée o fato de Getúlio haver incluído na nova Constituição de 1934 a cláusula que facultava o voto às mulheres. Quando morando no estrangeiro, Aimée também representou um brilhante exemplo de mulher brasileira, contribuindo em muitas ocasiões para o enriquecimento e a difusão da cultura de sua pátria. Sem falar da comida brasileira, que ela introduziu em suas festas, e de sua coleção de roupas e arranjos que fazem parte do acervo do Fashion Institute of Technology.
Vale ainda destacar o importante papel que exerceu na formação do acervo do Museu de Arte de São Paulo, descobrindo para Assis Chateaubriand uma série de pinturas valiosas, em poder da aristocracia europeia empobrecida.
Na época de Juscelino, foi nomeada consulesa honorária em Biarritz. Em 1965, presidiu a sessão solene da Academia de Ciências de Leningrado, após visitar o herbanário de 60 mil exemplares levados à Rússia pelos sobreviventes da expedição Langsdorff e admirar as mais de 300 páginas de diário daquela aventura inesquecível do barão Langsdorff (1774-1852), que, entre 1822 e 1829, explorara o interior do Brasil levando consigo um grupo invejável de artistas e naturalistas. •
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