O Estado de S. Paulo

Incêndios começam a ultrapassar a capacidade de recuperação da natureza

Cada vez mais frequentes e destruidores, megaincêndios têm desafiado a capacidade de recuperação de ecossistemas

EMILY ANTHES • TRADUÇÃO RENATO PRELORENTZOU

Em 15 de agosto, um pequeno incêndio florestal foi detectado nas colinas de West Kelowna, na Colúmbia Britânica, Canadá. A paisagem estava seca e o vento, forte. Nos dias seguintes, o modesto incêndio explodiu e virou uma conflagração violenta. Desceu correndo pelo vale, em direção ao Lago Okanagan. O vento soprou brasas incandescentes sobre a água, provocando novos incêndios ao redor da cidade de Kelowna.

“Não dormi muito na noite em que os incêndios cruzaram o lago”, disse Karen Hodges, moradora de Kelowna. “Dava para ver o fogo da minha janela. Fiquei pensando nas pessoas que conheço no vale e onde ficavam as casas delas.”

Hodges, ecologista conservacionista da Universidade de Colúmbia Britânica em Okanagan, também se preocupou com a vida selvagem. Ela vinha estudando algumas corujas ocidentais que costumavam fazer ninhos no coração do que agora era um inferno que se movia rapidamente. “Com o fogo naquela velocidade, era difícil para os animais escaparem”, disse ela. As corujas fugiram a tempo? Depois da pior temporada de incêndios florestais já registrada no Canadá, o que sobraria para os sobreviventes?

O fogo é um fenômeno natural: algumas espécies realmente se beneficiam de seus efeitos e mesmo aquelas que não se beneficiam podem ser muito resilientes diante das chamas. Mas, à medida que se intensificam, os incêndios começam a ultrapassar a capacidade de recuperação da natureza. “Nem todos os incêndios têm o mesmo impacto”, disse Morgan Tingley, ecologista da Universidade da Califórnia (Ucla). “Esses megaincêndios não são bons para os ecossistemas.”

Os megaincêndios – que superam em muito o tamanho dos incêndios florestais típicos – têm um impacto ecológico imediato, matando plantas e animais que poderiam sobreviver a incêndios mais contidos. A longo prazo, a mudança nos padrões dos incêndios poderá transformar paisagens, refazer completamente os ecossistemas e fazer com que algumas espécies deixem de existir.

Esta era incendiária, que alguns cientistas chamaram de Piroceno, pode levar a “uma conversão total dos hábitats do planeta”, disse Hodges. “Neste momento, todo o mundo está falando sobre incêndios e fumaça e quem morreu, por causa do imediatismo dos incêndios deste ano. Mas, na verdade, as consequências a longo prazo são muito mais graves e sustentadas.”

SOBREVIVENDO ÀS CHAMAS. O fogo tem sido um fenômeno planetário há centenas de milhões de anos, e as plantas e animais que evoluíram em regiões propensas ao fogo se adaptaram a conflagrações periódicas. Algumas árvores têm raízes que podem brotar novamente mesmo que o tronco queime, e o mero cheiro de fumaça pode despertar alguns animais do torpor, uma forma de hibernação leve.

Mas, em muitas regiões, os incêndios têm ficado maiores e mais severos. Nos Estados Unidos, os incêndios florestais queimam hoje muito mais terras do que três décadas atrás, especialmente nos Estados do oeste. Globalmente, o risco de incêndios catastróficos pode aumentar em mais de 50% até ao final do século, informaram as Nações Unidas.

A culpa é das mudanças climáticas, disseram os cientistas, mas também de outros fatores, como a expansão de gramíneas invasoras altamente inflamáveis, que ajudaram os incêndios mortais em Maui a se espalhar tão rápido. Mais de um século de supressão de incêndios também deixou algumas florestas repletas de árvores, dando mais combustível às chamas. “Quando os incêndios queimam, queimam com muita intensidade”, disse Chris French, vice-chefe do Sis

tema Florestal Nacional dos Estados Unidos.

Mesmo os organismos que se dão bem com o fogo estão em perigo. No norte da Austrália, os lagartos-cobra conseguem sobreviver a incêndios de baixa gravidade se escondendo na copa das árvores. Mas, durante incêndios graves, quando as chamas aumentam, os lagartos que usam esta estratégia podem morrer.

Os incêndios também estão se espalhando por ecossistemas onde as chamas são uma ameaça desconhecida. Os megaincêndios que eclodiram na Austrália em 2019 e 2020 queimaram as florestas tropicais do país, que continham muitas plantas que não conseguem se regenerar após a queima.

ANIMAIS ‘INGÊNUOS’. Os animais desses ecossistemas podem ser “ingênuos em relação ao fogo”, disse Dale Nimmo, ecologista da Universidade Charles Sturt, na Austrália. “Podem não ter sofrido nenhuma seleção natural para detectar sinais sutis de fogo no ar ou através do som. E, por isso, podem não reconhecer a ameaça quando ela se aproxima.”

A lagartixa-do-mato, um lagarto mediterrâneo, vive em vários hábitats distintos, dos quais só alguns sofrem incêndios frequentes. Um estudo de 2021 concluiu que lagartos recolhidos em locais propensos a incêndios reagiram rapidamente ao cheiro de fumaça, sacudindo a língua e correndo pelos terrários. “Em locais onde o fogo não é uma ameaça comum, os lagartos não fizeram nada”, disse Lola ÁlvarezRuiz, bióloga do Centro de Pesquisa da Desertificação na Espanha, que conduziu o estudo.

Incêndios que consomem mais matéria também podem produzir mais fumaça por unidade de área queimada, ameaçando animais distantes das chamas. “Todos os animais que respiram ar são afetados pela exposição à fumaça, porque os produtos químicos da fumaça são tóxicos”, disse Olivia Sanderfoot, ecologista da Ucla.

A inalação de fumaça pode fazer mais do que causar problemas respiratórios. Durante meses, depois de graves incêndios em turfeiras terem produzido poluição atmosférica recorde na Indonésia em 2015, os orangotangos de Bornéu vocalizaram com menos frequência e suas vozes ficaram mais ásperas. Eles também passaram a se mover menos e a comer mais do que antes da fumaça, mas ainda queimavam a gordura corporal armazenada, sugerindo que seus corpos estavam trabalhando horas extras. Talvez seja um sinal de inflamação ou estresse, disse Wendy Erb, ecologista do Laboratório de Ornitologia Cornell, que conduziu a pesquisa.

As consequências a longo prazo não estão claras, mas os incêndios se tornaram comuns em Bornéu, que é o único lar dos macacos severamente ameaçados. “Estamos falando de todos os orangotangos vivos que nos restam. Eles agora estão essencialmente expostos à fumaça com muita regularidade”, observou Erb.

RETORNO DAS CINZAS. Os animais que sobrevivem ao inferno precisam encontrar comida, água e abrigo em paisagens quentes, secas e desnudas, onde o risco de predação é alto. Isso porque, rodeados por presas enfraquecidas, alguns predadores prosperam após as queimadas. Felizmente, os incêndios tendem a queimar de forma desigual, devastando alguns grupos de árvores e poupando outros.

Essas ilhas não queimadas podem ser a tábua de salvação para espécies sensíveis ao fogo, como o caribu, que se alimenta de líquenes altamente inflamáveis, bem como abetos de casca fina. Mas alguns dos incêndios de hoje estão deixando menos desses oásis.

“Você caminha 800 metros sem ver uma única árvore viva”, garantiu Andrew Stillman, ecologista do Laboratório de Ornitologia Cornell. “Cada vez mais, esses incêndios parecem criar condições de hábitat que estão fora das normas às quais essas espécies estão adaptadas.”

Isso pode valer até mesmo para animais que gostam de fogo, como o pica-pau-de-dorsopreto. Os pássaros nidificam em árvores queimadas e se alimentam de larvas de besouros que colonizam os troncos carbonizados. Mas eles preferem trechos de árvores queimadas perto de árvores vivas e frondosas, que protegem seus filhotes dos predadores, descobriram Stillman e Tingley.

Depois do enorme incêndio de Rim, na Califórnia, em 2013, cientistas procuraram os picapaus em quase 500 locais ao longo da extensa cicatriz queimada. Encontraram apenas seis pássaros. “Era um grande hábitat queimado, mas não era o tipo certo de hábitat queimado”, disse Tingley.

Menos aglomerados de árvores vivas também podem reduzir o retorno do crescimento. “Em muitos lugares, não estamos conseguindo regeneração porque a fonte de semente se perdeu”, disse French, do Sistema Florestal Nacional. “Honestamente, parece que alguém entrou e explodiu uma bomba.” Um solo chamuscado e sem vegetação, que não absorve bem a chuva, também pode dificultar a regeneração da floresta. Inundações repentinas após incêndios podem levar cinzas e sedimentos para rios e córregos, poluindo a água, matando peixes e remodelando cursos de água.

EXTINÇÃO E EVOLUÇÃO. Nos territórios do noroeste do Canadá, os repetidos incêndios transformaram completamente algumas florestas. Em certo local, pinheiros imponentes deram lugar a gramíneas e a um punhado de álamos “raquíticos e atrofiados”, que têm sementes leves que podem ser transportadas pelo vento, disse Ellen Whitman, cientista pesquisadora de incêndios florestais na Natural Resources Canada. “É um lugar muito diferente”, acrescentou ela.

A mudança não é necessariamente ruim. Os incêndios podem provocar uma regeneração tardia em locais onde as chamas foram suprimidas artificialmente, e as florestas não são inerentemente superiores a outros ecossistemas. Os prados antigos, que são áreas importantes para a biodiversidade, também estão ameaçados; em alguns lugares, as pastagens se transformaram em florestas, em parte por causa da supressão de incêndios.

“Então, talvez, de certa forma, esteja sendo restaurado um certo equilíbrio”, lembrou Whitman.

Mas pode levar muito tempo até que novos prados criem biodiversidade, e as transformações da paisagem têm efeitos em cascata. Na Amazônia, áreas florestais sujeitas a incêndios frequentes começaram a se assemelhar a savanas; nesses locais, as formigas e borboletas que preferiam as florestas diminuíram, enquanto as espécies que preferiam hábitats abertos aumentaram, descobriram os cientistas.

Na América do Norte, a perda de árvores grandes e antigas pode reduzir o número de habitantes das florestas, como as martas, integrantes da família das doninhas que se escondem dentro dos ocos das árvores. Embora a ideia continue sendo apenas especulativa, as mudanças na atividade do fogo poderão, em última análise, produzir comunidades ecológicas mais homogêneas, dominadas por espécies “generalistas”, como os coiotes e os ratos-veadeiros, que são flexíveis nas suas dietas e hábitats, explicaram os cientistas.

“Estão falando sobre incêndios e fumaça e quem morreu, por causa do imediatismo dos incêndios deste ano. Mas, na verdade, as consequências a longo prazo são muito mais graves e sustentadas”

Karen Hodges Ecologista da Universidade da Colúmbia Britânica

SINAL PERDIDO. Hoje, o aumento da atividade dos incêndios pode levar mais de mil espécies ameaçadas de plantas e animais para mais perto da extinção, calcularam os cientistas. E muitas plantas e animais já enfrentam múltiplos fatores de estresse. No Canadá, as corujas ocidentais estão ameaçadas pelo desmatamento e pela expansão das corujas-barradas, que são invasoras. “Aí você joga fogo em cima de tudo isso, uma coisa adicional que mata alguns deles, estressa outros e muda o hábitat de todos. De repente, você tem de lidar com muitos problemas ao mesmo tempo”, afirmou Hodges.

O incêndio em West Kelowna queimou algumas das árvores dos ninhos das corujas, disse ela, e as perspectivas são sombrias para um jovem pássaro marcado com GPS que um de seus alunos estava rastreando. “Sua última localização conhecida foi bem no meio do incêndio que explodiu muito rápido”, concluiu Hodges. “Não detectamos o sinal desde então.”

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2023-10-30T07:00:00.0000000Z

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