A arte contra uma sociedade raivosa
A cultura é mais importante do que a política ou o entendimento dos algoritmos
David Brooks Editorialista e colunista do ‘The New York Times’ TRADUÇÃO RENATO PRELORENTZOU*
Semanas atrás, circulando pela lojinha do Museu de Arte Moderna de Nova York, me deparei com uma sacola onde estava escrito: “Você não é mais a mesma pessoa depois de vivenciar a arte”. É um sentimento simpático, pensei, mas será que é verdade? Consumir arte, música, literatura e o resto do que chamamos de cultura faz de você uma pessoa melhor?
Aristóteles pensava que sim, mas, hoje, muita gente parece duvidar. As pesquisas mostram que os americanos estão abandonando as instituições culturais. Desde o início da década de 2000, cada vez menos pessoas dizem visitar museus e galerias de arte, ver peças de teatro ou assistir a concertos de música clássica, à ópera ou ao balé.
Os estudantes universitários estão fugindo das humanidades e correndo atrás das ciências da computação – aparentemente porque concluíram que vantagem profissional é mais importante do que o estado da alma. Muitos professores também parecem ter perdido a fé.
Mas comigo não cola. Confesso que ainda me apego à velha crença de que a cultura é muito mais importante do que a política ou qualquer formação préprofissional em algoritmos e sistemas de software. Estou convencido de que consumir cultura fornece à sua mente conhecimento e sabedoria emocional; ajuda você a ter uma visão mais rica das próprias experiências; ajuda você a entender a profundidade do que acontece com as pessoas ao redor.
A romancista Alice Walker lamentou que lhe faltassem modelos. Ela não conhecia escritoras negras que pudessem lhe servir de exemplo e inspiração enquanto tentava entender seu mundo e contar suas histórias. Tempos depois, encontrou a romancista e antropóloga Zora Neale Hurston, que, décadas antes, tinha apontado o caminho, mostrado como ver e se expressar, possibilitado que ela escrevesse sobre o vodu, as estruturas do autêntico folclore negro. Graças a Hurston, ela tinha uma nova forma de ver, uma forma mais profunda de se conectar com sua herança.
Eu diria que, se ficamos tão tristes, solitários, raivosos e mesquinhos como sociedade, é pelo menos em parte porque muitas pessoas não aprenderam ou nunca se interessaram em adentrar com empatia nas mentes dos outros seres humanos. Estamos cada vez mais politizados e, ao mesmo tempo, cada vez menos moralizados, espiritualizados e cultos.
A saída é redescobrir o código humanista. Esse código se baseia na ideia de que, a menos que você mergulhe nas ciências humanas, talvez nunca se depare com a questão mais importante: como devo viver?
Fiz faculdade numa época em que muitas pessoas acreditavam que os grandes livros, poemas, pinturas e peças musicais realmente guardavam as chaves do tesouro. Se você os estudasse, eles melhorariam suas opiniões, sua conduta.
DEBATE. Nossos professores na Universidade de Chicago tinham aguçado a cabeça e renovado o coração aprendendo com livros e criticando livros. Ardiam intensamente tentando transmitir o que autores e artistas do passado tinham tentado dizer.
Os professores nos acolheram em um grande debate, com tradições de disputa que remontam a Ésquilo, William Shakespeare, George Bernard Shaw e Clifford Odets. Eles delineavam perspectivas extraordinárias, pessoas que tinham visto mais longe e mais profundamente, como Agostinho, Sylvia Plath e Richard Wright. E nos apresentaram uma gama de ecologias morais construídas ao longo dos séculos: estoicismo, budismo, romantismo, racionalismo, marxismo, liberalismo, feminismo.
A mensagem era que todos nós poderíamos apurar o gosto e o juízo ao nos familiarizarmos com o que havia de melhor – a mais grandiosa arte, filosofia, literatura e história. E essa jornada rumo à sabedoria se estenderia pela vida toda.
As ciências exatas nos ajudam a compreender o mundo natural. As ciências sociais nos ajudam a avaliar padrões de comportamento em populações. Mas a cultura e as artes nos ajudam a entrar na experiência subjetiva de pessoas específicas: como este indivíduo em particular se sentia, como este outro ansiava e sofria.
Sabemos, por estudos dos psicólogos Raymond Mar e Keith Oatley, que a leitura de literatura está associada ao fortalecimento da empatia. A leitura profunda, a imersão em romances com personagens complexos, em histórias que exploram as motivações desse personagem ou das feridas daquele outro, é um campo para a compreensão da diversidade humana.
CONHECIMENTO EMOCIONAL.
Esse exercício nos possibilita ver as pessoas reais com mais precisão e generosidade, compreender melhor suas intenções, necessidades e seus medos – o reino oculto dos seus impulsos inconscientes. O conhecimento resultante não é factual, mas sim emocional.
O romancista Frederick Buechner dizia que nem todos os rostos pintados por Rembrandt eram notáveis. Alguns são apenas comuns. Mas mesmo o rosto mais simples “é visto de maneira tão notável que nos obriga a vêlo de maneira notável”. Somos levados a valorizar outras pessoas, a respeitar a imensa profundidade de cada alma humana.
As experiências com grandes obras de arte nos aprofundam em modos difíceis de descrever. Visitar a Catedral de Chartres ou terminar Os Irmãos Karamazov não é assimilar novos fatos, mas sentir-se mudado, engrandecido. No romance Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke, o protagonista nota que, à medida que envelhece, consegue perceber a vida em um nível mais profundo: “Estou aprendendo a ver. Não sei por que, mas tudo penetra mais profundamente em mim e não se detém onde sempre se detinha até agora”.
Mark Edmundson ensina literatura na Universidade da Virgínia e é um dos que ainda seguem o código humanista. Em seu livro Why Read? (Por Que Ler?), ele descreve a carga incorporada a uma obra de arte: “A literatura é, creio eu, nosso melhor estímulo para novos começos. Por mais que a sociedade despreze a escrita imaginativa, por mais que aqueles supostamente empenhados em preservar a arte literária possam menosprezá-la, é na literatura que se abrigam as grandes esperanças de renovação humana”.
Mas como isso acontece? Como a cultura funciona? A resposta mais curta é que a cultura nos ensina a ver. “A melhor coisa que uma alma humana já fez neste mundo foi ver algo e contar com clareza o que viu”, escreveu o crítico de arte vitoriano John Ruskin. Sua maneira de perceber o mundo se torna sua maneira de estar no mundo. Se seus olhos aprenderam a ver – da maneira como Leon Tolstoi via – se você entende as pessoas com tanta complexidade quanto Shakespeare, então você melhorou a maneira como vive a vida.Um dos meus heróis é Samuel Johnson, ensaísta, dramaturgo, poeta e dicionarista, um dos maiores críticos de todos os tempos. Ele teve uma juventude um tanto desleixada – era preguiçoso, pouco confiável. Ao longo das décadas, porém, leu, escreveu e tateou seu caminho rumo à grandeza. Lia com uma sensibilidade impressionante. Certa vez, aos 9 anos, estava lendo Hamlet e chegou à cena do fantasma. Ficou tão apavorado que correu até a porta da frente para ver as pessoas na rua, para se lembrar de que ainda estava na terra dos vivos.
Johnson escreveu biografias, compôs ensaios, poemas e peças de teatro sobre grandes obras – e especialmente sobre seus próprios pecados, como se estivesse tentando expulsá-los com o autoexame. Sua consciência da depravação humana o levou à humildade, ao autocontrole e à redenção. E deu certo.
No final da vida, ele era um homem que conseguia ver o mundo com absoluta honestidade e empatia. Convivia com artistas e estadistas, mas convidou marginalizados da sociedade a viverem com ele, para que pudesse lhes oferecer alimento e abrigo. Ele encarnava esse velho ideal humanista. E se tornou uma pessoa de bom gosto, sensata, uma pessoa de cultura. Morreu um homem maravilhoso. •
Estamos cada vez mais politizados, mas, também, cada vez menos cultos e espiritualizados
CULTURA & COMPORTAMENTO
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2024-02-19T08:00:00.0000000Z
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