Vício em telas não poupa os mais velhos e afeta relações
Sintomas mais comuns são estresse, depressão e ansiedade; estudo realizado nos EUA revelou que pessoas mais velhas estão mais obcecadas por telas do que os jovens
JOÃO PEDRO ADANIA
Quando o programador Gabs Ferreira visita o pai no interior de São Paulo, ele quase sempre o encontra do mesmo jeito: com o celular nas mãos e o Reels do Instagram na tela.
No começo, Antônio, o pai de Gabs, não entrava em redes sociais, mas aderiu às plataformas influenciado pela família. Hoje, ele é um usuário ativo e entra todos os dias no Instagram e passa horas no YouTube. “Às vezes, estamos eu, minha mãe e mais alguém na mesa e tem hora que ele desassocia um pouco. Pega o celular e fica rodando ali”, conta.
O uso excessivo de celulares – e outros aparelhos – já motivou estudos ao redor do mundo. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) concluiu que esse tipo de dependência está ligado a uma piora na saúde mental em idosos, adultos e crianças. Um outro estudo, realizado pela Nielsen, empresa americana de pesquisa de mercado e análise de dados, revelou que idosos nos EUA estão mais obcecados por telas do que os jovens.
Pouca referência Para tratamento, utilizam-se critérios emprestados da dependência em jogos
“Eu já falei para ele que eu me preocupo com a possibilidade de ele envelhecer com qualidade, de ele não conseguir se tornar um idoso saudável levando essa vida que está levando hoje”, diz Gabs.
Pesquisadores dizem que os sintomas mais comuns desse uso desmedido são estresse, depressão e ansiedade.
“A gente percebe que isso interfere silenciosamente na relação”, diz Gabs. “Porque parece uma coisa besta, ele está lá vendo um vídeo, mas são momentos em que a gente deixa de conversar no pouco tempo que temos juntos.”
A maioria dos casos é percebida entre familiares preocupados com mudanças de comportamento do idoso, segundo Elton Konamata, médico psiquiatra do Hospital Albert Einstein.
Além disso, ele explica que apenas a dependência em jogos tem critérios diagnósticos reconhecidos pelos manuais clínicos, o que dificulta o enquadramento dessa dependência no arcabouço médico.
Assim, de acordo com Konamata, para vício em telas, os critérios são emprestados da dependência em jogos. “Essa parte da dependência de jogos (que guia o diagnóstico) de vício em telas é um ponto mais delicado, porque é difícil ter ferramentas para identificar as pessoas que têm esse potencial”, diz. “Existindo uma suspeita por um provável problema com relação a esse comportamento, são feitas uma avaliação e uma entrevista médica, e aí a gente vai identificando se preenche os critérios diagnósticos para tais doenças.”
No caso do pai de Gabs, há um agravante: ele sempre trabalhou com tecnologia. “Meu pai tem 60 anos e teve o primeiro iPhone”, conta. “Então, ele é ligado em tecnologia e tem a própria empresa. Ele é programador.”
Mas a relação de Antônio com a tecnologia não representa a maioria, que, segundo Konamata, usa o tempo livre de aposentado para intensificar a atividade online. “Os momentos ociosos facilitam a propensão de ocupar o tempo com o uso de telas e celulares.”
Embora não existam pesquisas específicas sobre o perfil de um idoso dependente de tecnologia, algumas características em comum foram detectadas pelo Programa de Transtorno do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq).
Na maioria das vezes os idosos que chegam ao IPq apresentam um quadro de isolamento social significativo antes mesmo da dependência, explica Rodrigo Machado, médico psiquiatra do IPq. “Aquele idoso que abusa da tecnologia muitas vezes já tem sintomas depressivos”, diz. “A tecnologia vem para preencher esse buraco de uma vida que está mais esvaziada de atividades e de vínculos sociais.”
JOGOS. Na prática, idosos são adeptos de jogos casuais e repetitivos, do estilo Candy Crush, mais viciantes porque têm um
mecanismo de recompensa aleatória, algo similar a um jogo de azar.
Outro conteúdo que estimula o consumo em excesso são plataformas de vídeos curtos, como TikTok, Shorts e Reels. “Esse tipo de consumo de informações é quase fast food”, afirma Machado.
Para esses pacientes, Machado aborda um tratamento baseado na terapia cognitiva comportamental e, no fim das contas, a ideia é que o idoso seja estimulado a praticar a autorregulação. “Nosso tratamento é em grupo, mas pode ser individual também. Um psicólogo conduz e normalmente dura de 16 a 18 sessões de psicoterapia”, diz. “Em paralelo a isso, a gente tem uma equipe multi
“A gente percebe que isso interfere silenciosamente na relação. Parece uma coisa besta, ele está lá vendo um vídeo, mas são momentos em que deixamos de conversar no pouco tempo que temos juntos”
Gabs Ferreira
disciplinar que dá suporte a esse paciente, que também passa por terapia ocupacional.”
Cler Guimarães da Silva, estudante de Psicologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), também percebeu que um familiar usava o celular mais do que deveria. Ela conta que Ocimar Guimarães, seu avô de 65 anos, não tinha celular, e quando ganhou um e fez o download do TikTok sua rotina mudou.
Ocimar contou à neta que gastou todo seu pacote de dados assistindo a vídeos no app e agora cogita colocar Wi-Fi em casa, item antes dispensável. Por morar na zona rural de São Gonçalo, município do Rio de Janeiro, Ocimar tem todas as características que tornam um idoso dependente de tecnologia. Ele tem algumas limitações físicas e vive em relativo isolamento.
PREOCUPAÇÃO. Cler se preocupa com o efeito que esse uso intenso pode causar na concentração, memória e interação social. “A gente sabe que o vício em telas é preocupante”, acrescenta. “Ele afeta muito a gente, afeta questão de concentração e a preocupação é: será que esse vício pode acarretar outras coisas?”
Algumas mudanças de comportamento chamaram a atenção de Cler. Antes de ter smartphone, Ocimar ia à casa da neta levar frutas e conversar. Depois do TikTok, começou a sair menos de casa. “Agora, minha maior preocupação é essa. Não vi nenhum impacto em questão cognitiva nele. Eu sei que ele tem um pouquinho de dificuldade em se concentrar em conversas. Eu estou conversando com ele de um assunto e ele começa a destoar um pouco e vem com outro assunto em cima.”
Muitos dos problemas que implicam dependência em telas estão ligados ao que o usuário faz no aparelho, explica Aderbal de Castro Vieira Jr., médico responsável pelo setor de tratamento de dependências de comportamentos do Proad, da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp).
“O problema do celular é que ele tem internet, é um smartphone. Só que ninguém é viciado em celular ou dependente de celular para fazer ligação telefônica”, diz Vieira. “Ele pode ser um dependente de joguinho, de videogame. O celular é só um meio.”
TRATAMENTO EM FAMÍLIA. Para tratar um paciente nessas condições, Vieira explica que o ambiente em que ele está inserido também deve ser tratado. “O paciente é aquela pessoa que foi identificada com aquele problema, mas você tem uma família doente ao redor, às vezes você precisa fazer intervenção também nessa família.”
Dessa forma, o tratamento requer uma abordagem mais personalizada. “Tratar só aquela pessoa que fica identificada com o problema pode não bastar. É preciso olhar um pouco mais, ter uma visão angular um pouco maior.”
Para Vieira, um caminho é descobrir o que a pessoa deixou de fazer para ajudá-la a recuperar esse hábito. “Se a pessoa pratica esporte, vamos aumentar o tempo de esporte. Se gosta de ler, vamos aumentar o tempo de leitura. Isso é o que a gente chama de redução de danos. Não precisa promover abstinência. Se você troca um padrão de uso muito ruim por um padrão de uso mais adequado, você progrediu.”
PRIMEIRA PÁGINA
pt-br
2025-02-23T08:00:00.0000000Z
2025-02-23T08:00:00.0000000Z
https://digital.estadao.com.br/article/282119232277156
O Estado
