O Estado de S. Paulo

Com Freud e Lacan, mas nunca longe de Machado e Guimarães

Psicanalista Maria Homem mostra sua biblioteca na série do ‘Estadão’ e fala da presença da literatura em sua formação

JOÃO ABEL

Aos 10 anos, Maria Homem já se arriscava com Machado de Assis. “Eu lia mesmo sem entender”, brinca. Na adolescência, ela entrou no que chama de ‘fluxo onírico’ de Guimarães Rosa. “É o gênio da literatura brasileira.” E, mais tarde, veio a paixão por Clarice Lispector, que rendeu até uma tese de doutorado focada nos últimos romances da escritora.

Agora, aos 55 anos, a psicanalista abriu as portas de sua biblioteca pessoal, em uma cobertura no Jardim Paulista, para a série Coleção de Livros, em que personalidades abrem seu acervo para o Estadão. O espaço guarda não só seus autores nacionais favoritos, como clássicos da psicanálise, um exemplar quase centenário de Freud e recordações do companheiro Contardo Calligaris, psi

“O que eu gostava no Machado era desse desvelamento cru da alma. Ele vai ali. Não deixa barato pra ninguém”

“Depois que você embarca em ‘Grande Sertão:Veredas’, é como se fosse uma droga. E você vai bebendo. É um fluxo quase onírico”

Maria Homem

Psicanalista

canalista italiano radicado no Brasil, cuja morte completou quatro anos no dia 30.

“Muita gente coloca objetos na estante de livros. Eu deixo um único apenas: uma das cadernetinhas de anotações do Contardo. A gente viajava e ele sempre comprava essas pequenas que cabem no bolso da camisa. Tinha centenas, milhares delas”, relembra.

A caderneta do marido fica propositalmente posicionada junto aos exemplares de Escritos, de Jacques Lacan – um dela e outro de Contardo. “É uma biblioteca misturada, tem coisas minhas e dele.” Na sala de jantar, por exemplo, há algumas obras sobre uma curiosa paixão do italiano: arte erótica. Ao lado, uma urna. E, dentro dela, as cinzas de Contardo.

“Na casa da minha avó tinha uma biblioteca, dessas bem características, antigas, de madeira escura e vidro. E tinha a obra completa do Machado”, relembra Maria. De Esaú e Jacó a Dom Casmurro, ela diz ter lido o escritor desde a pré-adolescência. “Só me irritava que ele dizia ‘Cara leitora...’ e cortava a brisa. Eu só queria saber do Bentinho e da Capitu.”

Para Maria Homem, a literatura foi o passaporte para a futura predileção pela psicologia. “Tanto Machado, quanto outros autores, como Clarice, têm contos que são pérolas de análise psíquica. O que eu gostava no Machado era desse desvelamento cru da alma. Ele vai ali. Ele é ferino. Ele não deixa barato pra ninguém.”

GRIFOS. Mas os olhos de Maria Homem brilham mais forte para João Guimarães Rosa. Ela abre uma edição dos anos 1980 da Nova Fronteira e recorda os grifos feitos quando ainda era uma jovem estudante. “É engraçado ver quem você era por meio dessas marcações.”

Guimarães, um pilar nacional, e Lacan, referência na psicanálise, se parecem, diz a autora. “Eles poderiam estar lado a lado na estante, porque são escritores que você começa a ler e pensa: ‘Caramba, que linguagem é essa?’.” Maria relembra o choque de estilos ao sair da retidão de Machado e mergulhar na tortuosidade de Rosa. “Depois que você embarca em

Grande Sertão: Veredas, é como se fosse uma droga. Não é preto e branco, não é letra, é um fluxo quase onírico”, diz.

No Limiar do Silêncio e da Letra, primeiro livro publicado por Maria Homem, em 2012, analisa os traços dos últimos três romances de Clarice Lispector, lançados nos anos 1970. Mas, de sua coleção, ela destaca Todos os Contos, na edição publicada pela editora Rocco: “Ela era muito boa de conto. Incrível”. Ela pinça, na edição, Feliz Aniversário, no qual enxerga uma conexão com Shakespeare. “Ali ela está simplesmente reescrevendo a história deRei Lear em uma festa de aniversário no subúrbio do Rio.”

Além de seu ‘cânone’ brasileiro, Maria também ressalta a coleção de clássicos que tem em sua biblioteca, como as obras completas de Sigmund Freud. “Elas estão praticamente quadruplicadas: tem edições em português, inglês, italiano, alemão...” Do autor austríaco, uma preciosidade quase centenária também marca presença na estante: uma primeira edição de O Mal-Estar na Civilização, publicada em 1930, e trazida de presente por um amigo da Alemanha.

“Nosso cânone (da psicanálise) é majoritariamente masculino, mas é preciso reconhecer o trabalho de mulheres importantes”, diz Maria Homem ao salientar a contribuição de Lou Andreas-Salomé. “Foi uma visionária que se correspondeu com Freud”, ela explica. Ela também fala de Sabina Spielrein. “Ela teve a intuição primeira do conceito de pulsão de morte.” •

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2025-04-07T07:00:00.0000000Z

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