O Estado de S. Paulo

‘Precisamos de políticas robustas para regular a inteligência artificial’

Para especialista, acúmulo de poderes das big techs representa maior preocupação com nova tecnologia Professor de Filosofia da Mídia e Tecnologia da Universidade de Viena. Trabalhou na regulação da IA na União Europeia

BRUNA ARIMATHEA

“É importante que países como o Brasil possam ter um papel construtivo na IA, no sentido de que eles podem estimular o desenvolvimento de tecnologias éticas. Porque o que está acontecendo agora é que as grandes empresas de tecnologia, principalmente dos EUA, estão em uma situação em que elas exportam suas tecnologias para a Europa, para o Brasil e assim por diante”

Ocrescimento acelerado da inteligência artificial (IA) no mundo, principalmente da IA generativa após o ChatGPT, é benéfica para a humanidade, mas apenas se for desenvolvida em bases éticas e em benefício do bem comum – algo que pode estar sendo deixado para trás pelas gigantes de tecnologia que dominam os modelos de linguagem. Essa é a opinião do belga Mark Coeckelbergh, filósofo e um dos principais pensadores em inteligência artificial atualmente.

Professor de Filosofia da Mídia e Tecnologia da Universidade de Viena, na Áustria, Coeckelbergh foi um dos especialistas que ajudaram a formular a primeira regulação de IA na União Europeia, modelo que tem sido base nas discussões regulatórias ao redor do mundo e que inspira as autoridades do Brasil a criar sua própria lei.

No País para uma série de eventos, que inclui a divulgação de seu livro Ética na IA, publicado pela editora Ubu no Brasil, Coeckelbergh conversou com o Estadão sobre a atuação das grandes empresas em inteligência artificial, o desenvolvimento rápido da tecnologia e a importância da sua regulação.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Qual é sua principal preocupação em relação à ética no desenvolvimento e uso da inteligência artificial?

Para mim, a preocupação mais urgente é o acúmulo de poderes de grandes empresas de tecnologia e, relacionado com isso, a falta de decisão democrática sobre IA. Isso é o mais importante. A longo prazo, é importante também olhar os custos ambientais dessa nova tecnologia. Esse é um tema que precisa de mais atenção.

Para uma IA ética, de onde deve vir a iniciativa? Das empresas, dos usuários, da regulamentação governamental?

As empresas tomam iniciativas, e é bom que eles façam isso. Mas, definitivamente, não é o suficiente. Então, precisamos de governos entrando no assunto, precisamos de políticas robustas para regular a inteligência artificial. A forma como isso está sendo feito no momento é bastante tecnocrática. Nós temos especialistas, e eu me incluo nisso, que aconselham governos para conversar, mas a regulamentação é feita fora dos fóruns usuais e democráticos. Precisamos envolver mais pessoas também para a realização de uma regulação para a IA.

Como a IA pode ter influência no processo democrático, principalmente em um ano de eleições como este?

A IA pode causar desinformação, polarização e fragmentação de um cenário, de modo que cada um fale apenas com seus próprios círculos. As pessoas não estão realmente interessadas nos pontos de vista umas das outras quando você tem essa situação e, com isso, a democracia é prejudicada. O problema é que, se houver muita desinformação e polarização, as pessoas não saberão mais em que acreditar e ficarão inseguras quanto à qualidade do conhecimento que encontrarem e à confiabilidade das informações também encontradas online, por exemplo. E, quando isso acontece, cria-se uma esfera que está pronta para abordagens mais autoritárias, porque não é possível ter democracia e falar sobre as coisas se você não sabe do que está falando, se a base do que você tem em comum está danificada.

Ainda é possível fazer as IAs se desenvolverem com princípios éticos?

Há sempre essa diferença entre a velocidade da tecnologia e a velocidade da ética. Mas eu estou otimista que ainda podemos fazer algo, porque algumas pessoas têm essa ideia de que a IA é uma espécie de força autônoma que vai para um futuro determinado. E eu acho que, o que precisamos, é uma outra visão da IA, sendo sempre conectada com os humanos.

Seu livro sobre ética foi lançado, primeiramente, em 2020, antes mesmo do lançamento do ChatGPT e do “boom” da inteligência artificial generativa. Se o sr. tivesse de fazer um acréscimo ao livro após esse fenômeno, qual seria?

Quando eu escrevi o livro sobre a ética da IA, nós não tínhamos coisas como a IA generativa, então, agora, esses problemas poderiam ser tratados mais profundamente diante dessas novas tecnologias. Também temos, agora, problemas mais concretos, por exemplo, de plágio e sobre a criatividade. Qual é o lugar da criatividade humana, já que essas IAs também podem criar imagens, podem escrever? Há novas perguntas sobre isso.

A evolução da IA tem tido um crescimento meteórico nos últimos anos. Esse crescimento é sustentável? Definitivamente, a forma como a IA está se desenvolvendo não é sustentável. Não apenas no campo da ética, mas também em um sentido de custos ambientais. Nós precisamos fazer algo sobre isso. Eu acho também que a IA não é o único problema que nós temos. Basicamente, o problema das mudanças climáticas é enorme, e nós também temos de pensar sobre como a IA se relaciona com isso. Então, definitivamente, temos de desenvolver a IA de uma forma mais sustentável, de uma forma que possa contribuir para mitigar mudanças climáticas em vez de fazer as coisas piorarem.

Tornar esse crescimento da IA sustentável é possível sem regulação?

Há sempre essa narrativa de competição, tanto dentro de países, com as diferentes empresas competindo, mas também geopoliticamente, como os EUA contra a China. Eu acho que é uma forma muito particular de olhar as coisas, e também há sempre o argumento de que a inovação é difícil se você tem uma regulação. Isso não é verdade. Eu acho que podemos ter um nível mínimo de regulação, onde os princípios éticos e políticos são respeitados, onde a IA é mais democrática, de certa forma, mas, ao mesmo tempo, também ter um tipo de campo de jogo para as empresas, que também saibam o que vai acontecer. No fim, é bom para o negócio também se os sistemas são mais éticos e mais sustentáveis, então, eles também podem ganhar a longo prazo.

O Brasil é um dos países que está tentando regulamentar a IA, a exemplo do que já foi feito na Europa, movimento do qual o sr. participou intensamente. Qual é a importância de um país como o Brasil ter suas próprias regulamentações sobre isso?

O Brasil é um país grande, com um grande mercado. Então, é importante também ter uma regulação. Também é importante que países como o Brasil possam ter um papel construtivo na IA, no sentido de que eles podem estimular o desenvolvimento de tecnologias éticas. Porque o que está acontecendo agora é que as grandes empresas de tecnologia, principalmente dos EUA, estão em uma situação em que elas exportam suas tecnologias para a Europa, para o Brasil e assim por diante. E é importante que, em vez de apenas nos conformarmos com isso, nós também façamos algo sobre isso. Há muita criatividade, há muitas pessoas no Brasil que podem fazer isso e eu acho que é possível.

Acabamos de ver a IA ser reconhecida com dois prêmios Nobel na última semana. Veremos a IA assumir a liderança em outras áreas importantes de nossas vidas?

Nós tivemos dois grandes prêmios em física e química em IA, e eu acho que isso indica o papel central que a tecnologia tem tomado em nossas sociedades. Isso é uma coisa muito contundente, e o que nos diz é que devemos nos esforçar o suficiente para encontrar uma maneira de lidar bem com a IA e imaginar nosso futuro. Um futuro não contra a tecnologia, não sem a tecnologia, mas um futuro com uma tecnologia que é sustentável e que contribui positivamente para as vidas das pessoas e para o bem comum.

Você acha que um novo prêmio para a medicina pode ser para a IA em um futuro em breve?

Eu acho que a tecnologia está sendo usada em muitos setores e está transformando todos esses campos, então, eu não vou ficar surpreso se isso acontecer. Vamos ver como isso vai ficar no futuro, mas isso indica que a IA é extremamente importante.

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2024-10-13T07:00:00.0000000Z

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