O Estado de S. Paulo

Filme iraniano faz reflexão sobre o ressentimento

‘Um Instante de Inocência’, filme do iraniano Mohsen Makhmalbaf, traz à luz nossos pequenos pecados

FELIPE PIMENTEL FELIPE PIMENTEL É HISTORIADOR E PSICANALISTA. ASSINA NO ESTADO DA ARTE A COLUNA ‘IDEIA DE BRASIL’, COM TEXTOS DEDICADOS A REFLEXÕES SOBRE A NOVA REPÚBLICA

Quem dera nossa sabedoria e domínio, especialmente nossa pureza e esperança, fossem fortes o suficiente para permitir um instante de inocência. Imagem ambígua, uma expressão maravilhosa, por conseguir, ao mesmo tempo, insinuar nossa possibilidade de inocência pura, mas também exaltar uma sabedoria que só nos escaparia momentaneamente – trata-se de uma tradução da expressão persa Num va Goldum, título do filme do cineasta iraniano Mohsen Makhmalbaf.

A forma do ressentimento não facilita sua disseminação, dado que, na maioria das vezes, age como um sentimento solitário, inaudito e inconfessável. Curiosamente, as mais diferentes culturas atuam contra ele. Há uma espécie de vergonha ou pudor em demonstrá-lo, talvez por carregar alguma nota de fraqueza ou falta de vigor. Assim, mais fácil se torna mostrá-lo de modo ativo e pungente, travestindo o ressentimento em uma mágoa ativa, ou mesmo como escárnio ou falsa indiferença (demonstrações que ocultam o ressentimento, que, em última instância, é um sentimento praticamente impotente).

Por esse anseio em esconder ou disfarçar o ressentimento fragilizado, a mágoa que não se vinga, o rancor que age sobre a vítima e não sobre o algoz, temos certa dificuldade em captá-lo em alguma representação, para, a partir daí, traçarmos ainda que uma vaga definição. O ressentimento aparece, às vezes de forma escusa, em grande parte das obras literárias e artísticas. Quantas vinganças não foram levadas a cabo, quantos amores impossibilitados, quantas famílias não foram destruídas pelo ressentimento?

Encontrar os sentimentos em seu estado puro talvez seja privilégio da arte e da religião. Por certo, toda busca de definição, especialmente no que respeita aos valores e afetos humanos, está fadada ao fracasso, mas após uma peregrinação por ilustrações distintas desse sentimento, creio que temos nesse filme de Makhmalbaf uma prolífica e precisa representação.

Não foi nas habilidades categoriais e científicas ocidentais que topei com uma ilustração bem acabada do ressentimento, mas nos desertos iranianos – cuja aridez chega até nós de forma terrível pelos noticiários políticos (tornados policiais), mas também de forma incrivelmente mais bela e sutil pela filmografia que, desde os anos 1990, ganhou a apreciação da audiência mundial. O cinema iraniano partiu dos geniais Mohsen Makhmalbaf, Jafar Panahi e Abbas Kiarostami. Aos poucos, podemos compreender sua maneira de filmar, que parece romper com alguns princípios tradicionais do cinema, por utilizarem atores amadores (muitas vezes, nem atores são) e por renunciarem à linearidade dos roteiros. O filme Um Instante de Inocência possui uma grande diferença em relação aos outros filmes ira

Makhmalbaf levou dois tiros e foi condenado à morte, mas terminou preso por cinco anos – torturado, perdeu o movimento das pernas

nianos, pois a marca distintiva destes é a renúncia ao grand finale, ou seja, mais que a busca pela culminação de histórias cruzadas, dedica-se atenção ao seu andamento. Em dezenas de filmes de Makhmalbaf, Abbas Kiarostami ou Jafar Panahi, a preocupação dos diretores é deixar-nos percorrer o caminho junto aos personagens, permitindo sempre que os destinos sejam traçados somente no nosso imaginário. Contudo, neste filme, a cena final é definitiva e explica toda a narrativa.

O filme baseia-se numa história real, vivida por Makhmalbaf. Ocorreu durante o governo iraniano conhecido como Regime dos Xás, regido pelo “monarca” Xá Reza Pahlevi, membro de uma família que controlava o Irã desde os anos 1930. Essa monarquia, dizem os historiadores, ascendeu ao poder com apoio de algumas potências ocidentais, tais como Inglaterra e França, precisamente em virtude de seus interesses petrolíferos crescentes no Oriente Médio desde o final do século 19. A proximidade com tais países se manteve e o regime dos Xás ficou conhecido como “ocidentalizante”. Por um lado, ficou marcado por projetos modernizantes; por outro, pela corrupção.

Após a segunda guerra, primeiro o Oriente e depois a África iniciaram um movimento de “tomada de consciência” antiimperialista que, em cada região, assumiu um feitio: em alguns países, a ferramenta política foi o socialismo (vide o caso vietnamita), em outros foi o simples nacionalismo (como em grande parte da descolonização africana), e em alguns houve ainda uma mistura de elementos nacionalistas, políticos e religiosos, como o caso do Irã. O islamismo incrustado na mentalidade do povo iraniano associou-se ao nacionalismo radical do momento, formando grupos que lutavam pela derrubada do regime dos Xás e pelo anseio de um governo representativo das singularidades étnico-culturais iranianas. Um famoso líder desse movimento, o aiatolá Khomeini, ganhou voz mundial, foi perseguido e teve de refugiar-se na França.

Nesse quadro, Makhmalbaf, aos 17 anos (o ano era 1974), punha-se também contra o regime dos xás e planejava alguma ação efetiva de manifestação. Não estava vinculado a nenhum grupo opositor, mas estava disposto a arriscar-se até na luta armada contra a ditadura de Pahlevi que há anos se arrastava. Porém, de certa forma inocente, resolveu agir por si próprio. Para poder se defender, precisava de uma arma. Makhmalbaf, então, trama com uma amiga um ataque a um policial da guarda do governo para desarmá-lo. A estratégia era tanto engenhosa, quanto ingênua: distraí-lo com um tipo de intervenção supostamente amorosa da jovem de forma a distrai-lo e, assim, abrir espaço para a ação de Mohsen. O plano foi levado a cabo. Malsucedida, a estratégia terminou em agressões de ambas as partes. Makhmalbaf chegou a levar dois tiros e foi condenado à morte, mas terminou preso por cinco anos. Na prisão, foi torturado a tal ponto que perdeu o movimento das pernas. Foi lá que começou a escrever textos literários e confessionais que posteriormente publicaria ou utilizaria como roteiros para seus filmes.

Sua libertação veio quando da Revolução Iraniana em 1979. O atual governante da família do governo, o xá Reza Pahlevi, estava envolvido em acusações de corrupção, sofria manifestações diárias de contestação e, não suficiente, lutava contra um câncer linfático. Naquele ano, refugiou-se no Egito, onde faleceu no ano seguinte. As forças de oposição convocaram seu líder, exilado em Paris, o aiatolá Khomeini, que desceu no dia 1.º de fevereiro no aeroporto de Teerã, diante de uma multidão de seguidores. A partir daí, o novo governo, conhecido como Regime dos Aiatolás, até

então libertador da sociedade oprimida pelos Xás, promoveu uma transformação geral da política, da economia e da sociedade iranianas. Tal regime, anos mais tarde, ainda mais opressor que o anterior, agora reprimia novos artistas e livrespensadores em geral. O agora adulto Makhmalbaf, diretor e roteirista, outrora crítico dos Xás, encontrou um novo adversário para a mesma bandeira.

Do outro lado da história do ataque de Makhmalbaf em 1974, temos o policial, que foi afastado do trabalho por 20 anos após o ocorrido.

Fim de história. Não fosse o fato de que, após esses 20 anos, Makhmalbaf resolve filmar esse incidente. Eis o filme.

Estamos em 1994, o já conhecido diretor Makhmalbaf anuncia num jornal que está à procura de atores para um futuro filme, exatamente sobre o ataque de 1974, e vemos um homem ir até a casa do diretor para se candidatar à vaga. Esse homem, de meia-idade, é recebido pela filha de Makhmalbaf, Hana (a própria). Comunica-lhe que é o próprio policial do incidente de 1974 e que gostaria de se candidatar à vaga de ator no filme. Makhmalbaf acata imediatamente a participação do policial e, na cena seguinte, já estamos num set de filmagens e trata-se de uma seleção de atores jovens. Organizando a seleção estão Makhmalbaf e o policial (os próprios). Cada um é responsável não só pela escolha do ator que o representará, mas pela direção de cada um. O filme torna-se uma história dupla: de um lado, temos o diretor, sobre o qual só sabemos que se tornara diretor de filmes e, no caso, buscava refilmar aquela cena de sua juventude. Ele começa a preparar o jovem que vai representar seu papel de “guerrilheiro” de outrora. Enquanto isso, do outro lado, temos o policial dirigindo o jovem que fará as vezes de policial da guarda palaciana da dinastia Pahlevi. Ele nos mostra sua decadência, não só durante, mas especialmente após o incidente daquela época. Conversando com o jovem e inapto ator que lhe representará, ficamos sabendo que sua frustração não decorre do ocaso que o incidente lhe legou. Sua decepção aponta para o engano em relação às intenções da menina que lhe distraíra. Está decepcionado pelo falso interesse dela.

Ele já está frustrado com a história real de 1974, mas, não suficiente, os dois jovens atores que representarão os papéis são inseguros – o que entra em direta colisão com um anseio obsessivo do policial de que eles representem a cena perfeitamente. É neste momento que entram os protagonistas da história que, curiosamente, não são esses atores/diretores tão repletos de intenções confessas e escusas, mas seres inanimados; e são eles que permitem a devida interpretação do filme.

A estratégia do jovem guerrilheiro, agora ficamos sabendo, é simples: após as subsequentes investidas desinteressadas, no dia determinado do ataque, a menina novamente seduzirá o policial e, atrás dela, virá o jovem Makhmalbaf armado de uma faca. Aproveitando-se da distração do policial, o guerrilheiro atacará o policial e lhe roubará a arma – tornando-se, enfim, um perigoso opositor do regime palaciano de Reza Pahlevi.

Porém, um outro cenário se anuncia. O policial, por sua vez, acariciado pelas investidas da jovem, prepara uma surpresa para ela: um vaso com uma flor, que lhe entregará em sua próxima despretensiosa investida.

Esse milimétrico ataque começa a ser organizado pelos jovens atores, auxiliados por seus diretores particulares. Em algumas etapas, separadamente, é inclusive ensaiado.

Paremos por um instante. Pois já podemos perceber que há algo curioso nessa situação, dado que estamos assistindo a um filme sobre a montagem de um filme, isto é, sobre o anúncio da filmagem, a seleção dos atores, a preparação de elenco, a direção de cena e, inclusive, os próprios ensaios. Não suficiente, não está claro quem é ator e quem é diretor, tampouco quais são os protagonistas: se são aqueles que são os protagonistas reais do evento de 1974 e agora atuam também como possíveis protagonistas do filme enquanto diretores do elenco que os representa na filmagem, ou se são os jovens atores que representam os protagonistas do evento que agora os dirigem. Assim, temos o personagem-diretor Makhmalbaf e o personagem policial preparando a filmagem em 1994 da cena originária real de 1974 na qual eram ambos protagonistas. Isto é, dentro do filme que mostra a preparação da filmagem da cena originária, temos o filme da própria cena – para além disso, um terceiro filme: a filmagem da cena de 74, que, assim esperamos, será filmada em algum momento.

Aqui temos uma história tripla: a primeira, o incidente real em 1974 de Makhmalbaf jovem com o policial; a segunda, o filme no qual se tenta representar o incidente; e a terceira, o filme que realmente vemos, e que deveria estar atrás das câmeras, a montagem desta segunda história. Voltemos ao filme.

Os dois diretores começam a enfrentar problemas. O menino que representa Makhmalbaf não quer atacar o policial; o policial implica ferozmente com o jovem que o representa. Não suficiente, esses desentendimentos se somam a eventos fortuitos e aleatórios. Quer dizer, as duas situações, a cena originária e a filmagem dela, representadas paralelamente, misturam-se e refletem reciprocamente os elementos que as compõem – os inconvenientes do acaso e as emoções mescladas – e terminam criando uma nova atmosfera na qual não sabemos se o menino que chora é o ator ou o próprio Makhmalbaf quando do incidente.

Após todas as dificuldades da reconstituição, nós finalmente vemos o incidente original ser filmado. Temos a cena final, que, na realidade, é uma foto, posto que, ao enquadrá-la, o filme se dá por terminado. Tal como na história verdadeira, a jovem se aproxima do policial para interpelá-lo com alguma dúvida irrisória, distraindo-o; o policial, por sua vez, sabedor do golpe que lhe espera, descansa sua mão sobre a arma para reagir ao ataque premeditado; e o jovem Makhmalbaf, por fim, vem metros atrás da menina, para golpeá-lo, quando de sua distração, com a faca escondida. Mas eis que a representação cinematográfica da história original de 1974 trai a história original: quando os três se encontram, os objetos, insistentemente focados, mudam, e a cena marcanos indelevelmente:

A cena é magistralmente poética e condensa todos os elementos em questão: de um lado, a mão do policial que cede ao gesto de sacar a arma e aposta na convocação ao suposto amor da jovem; do outro, o pão, que escondia a arma, estendido desistente do gesto violento da arma branca; e, não suficiente, em meio à transformação, o semblante absorto da menina, que vê aqueles dois homens abrirem mão da agressividade em nome da confiança.

Diretores iranianos fazem sucesso com atores amadores e às vezes renunciando à linearidade dos roteiros

Há uma singularidade naquilo que o cinema pode oferecer como arte, praticamente vedado a outras manifestações artísticas, a saber, a instantaneidade da imagem que nos assalta. E a narrativa anteriormente construída somente faz intensificar a força da imagem. Por vezes, é como se o cinema escrevesse um romance finalizado por um poema – tendo o ganho da imagem. Mas, para além dessas complexidades estéticas, a história, e especialmente esta cena, tratam de um efeito do ressentimento em seu estado puro.

O policial, e isto sabemos ao longo do filme, foi afastado do trabalho e dedicou seus anos de aposentadoria forçada à memória desta mulher que ele supunha amá-lo e que o enganou na vida real. Estes sofridos anos estavam tomados pelo ressentimento por este engodo. O sofrimento do jovem diretor está muito mais próximo da frustração e do arrependimento, mas o personagem ressentido é o policial. É ele que apresenta, em ato, a imagem do ressentido.

O ressentido está intoxicado pelo evento que lhe ocorreu. Ele se sente passivo diante dessa memória da qual não pode escapar. Se adicionarmos uma cota de raiva e atividade ao ressentimento, formaremos o rancor. O rancor de pronto traveste-se em vingança, pois a única forma de apagar o evento ocorrido é vingá-lo. É nesse sentido que o ressentimento é um aparentado passivo e ingênuo da vingança. Mas o rancor é algo específico e cristalizado, enquanto o ressentimento é algo que retorna insistentemente.

Nietzsche menosprezou o ressentimento por talvez não compreender que ele, ainda que possa moldar-se em vingança, é uma busca desesperada pela remissão do horror vivido sem lesar o outro. Enquanto o rancoroso crê que a restauração de sua paz é a guerra contra o que lhe causou algum mal, o ressentido anseia por restaurar naquele que o enganou a aposta na confiança. Os dois restauram e apagam o incidente, mas somente o ressentido possui uma meta além da restauração do próprio evento, no caso, a restauração do humanismo em si. E é por isso que esse filme o apresenta em estado puro. Quando o ressentimento não possibilita restaurar a cena primeira como inocência, ele traveste-se em ódio. A vingança e seu alimento, o rancor, não passam de um ódio cristalizado no coração de um homem que foi atacado por alguém e cuja dor inalterável fere-o cotidianamente, constrangendo-lhe à única forma de a mitigar, a saber, retaliando o agressor. O ressentimento, de outro modo, tem algo a ver com o engodo psicológico ou moral: de algum modo, alguém apostou no que há de mais elevado no homem e foi enganado,seja pelas ci r - cunstâncias, seja por outrem. E diante disso surge a alternativa: ou abandonar a aposta humanitária (e carregar o peso da desconfiança mútua) ou tentar restaurar a cena originária de forma a desfazê-la. É evidente que essa restauração é artificial e, em certa medida, fantasiosa, porém, o que importa ao ressentido é que ele possa novamente crer. Nietzsche, fixado na imagem do ressentimento como algo passivo, não percebeu que ele pode ser uma das mais pretensiosas atividades da alma: a busca por restaurar o outro e si mesmo do horror que nos cabe.

O ressentido é mais corajoso que o rancoroso, pois ele arrisca retornar ao estado original de inocência que lhe legou tamanho sofrimento, em vez de ceder ao jogo da vingança pura.

Como infelizmente o passado é um objeto jamais inteiramente restaurado, o homem inventou, de um lado, o perdão e, de outro, a arte, pois é só no imaginário do que há de mais artificialmente humano que pode haver a remissão de uma dor primeira. •

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