O Estado de S. Paulo

Educação financeira de crianças não pode ser tabu, defendem especialistas

CECÍLIA MAYRINK CAMILA LUTFI

Entendimento é de que conversar sobre dinheiro é importante para que as crianças tenham boa relação com suas finanças e entendam a diferença entre necessidade e desejo

Quanto custa uma bicicleta em chocolates? Essa foi a estratégia que Érika Pontes Melo usou para ensinar o filho Caio, de apenas 11 anos, a lidar com o dinheiro. Ela adotou, na prática, uma recomendação cada vez mais repetida por especialistas em finanças pessoais: é importante que as crianças conheçam a diferença entre necessidade de ter algo e desejo de comprar algo, um caminho para a priorização dos gastos na vida adulta.

“Ele me disse que queria uma bicicleta para andar no parque, mas expliquei que era caro comprar uma”, afirmou Érika. A “aula” começou por definir que o preço de um chocolate seria equivalente a R$ 2,50. Caio passou, então, a usar um cofrinho para as reservas e aprendeu a definir quantos doces seriam necessários para comprar um balão, uma roupa e até mesmo uma casa. Com um pouco de tempo e planejamento, o garoto conseguiu economizar e chegar ao valor que precisava.

Segundo Paula Sauer, planejadora financeira CFP pela Planejar, não existe uma idade correta para introduzir o assunto. Isso depende principalmente do modelo parental e das referências que os adultos tiveram em suas próprias famílias. Quando as crianças são colocadas para cuidar de seu dinheiro, elas começam a desenvolver a consciência sobre responsabilidade, tomada de decisões e planejamento, o que contribui para evitar possíveis endividamentos no futuro.

“Algumas famílias com uma relação mais saudável com o dinheiro podem abordar o assunto antes mesmo da alfabetização da criança em ações cotidianas. Levá-los ao supermercado, ao caixa eletrônico do banco, faz parte dessa introdução”, diz Paula.

Raul começou a ouvir sobre o uso consciente do dinheiro quando tinha ainda 2 anos. É o que relata a mãe, Patrícia Silva, que adotou a estratégia de dar ao filho – hoje, com 8 anos – uma carteira e um cofrinho para que ele pudesse iniciar as primeiras reservas. Atualmente, ele recebe uma mesada de R$ 70, e a utiliza para comprar instrumentos musicais e produtos para jogar futebol, como camisetas e chuteiras.

Quando ele quer comprar algo de maior valor, já entende que precisa fazer renda extra para complementar o crédito mensal. Para levar uma guitarra para casa, por exemplo, Raul vendeu doces para a família e vizinhos para acelerar os ganhos. Em paralelo, os pais também conversam sobre o orçamento da família na presença de Raul. “Falar com ele sobre a nossa vida financeira nunca foi um tabu”, diz Patrícia.

Sarai Molina, gestora da área educacional da Ágora Investimentos, frisa que esse é um dos principais métodos para a criança entender o valor das coisas. “Conhecer quanto custa a luz da casa, água, celular, internet e até mesmo os alimentos faz parte de uma boa educação financeira.”

No mercado, os pais podem mostrar para a criança que existe mais de uma marca do mesmo produto e com preços diferentes. Ou seja, explicar qual é o fator que vai determinar qual produto é mais conveniente é uma forma de ensinar sobre gastos estratégicos e responsáveis.

Utilizar brinquedos também é uma forma de dar um primeiro passo nesse caminho. Os especialistas recomendam usar dinheiro de mentira, caixas registradoras e brincadeiras que abordam a trajetória financeira, mostram ganhos e perdas, disciplina e momentos de crise.

Fernanda Ghisloti, 40, conta que sua filha, Bianca, de 10 anos, também já começou a administrar seu próprio dinheiro. Introduzindo o tema desde cedo, a mãe optou por dar uma mesada de R$ 100 mensais para a filha. “Essa foi a forma que eu aprendi a mexer com dinheiro; então, entendo que pode ser efetivo com ela também”, afirma Fernanda. Ela diz ainda que as primeiras conversas começaram há dois anos e, depois que a filha entendeu a dinâmica e se acostumou a ficar dentro do orçamento, ganhou o próprio cartão de crédito pré-pago.

CONTA BANCÁRIA. Abrir uma conta bancária para a criança é uma das alternativas que podem ajudar no processo de educação, e hoje existem diversas instituições financeiras que aceitam contas para menores de idade, com acompanhamento do responsável. Bianca, Caio e Raul possuem contas digitais, mas a responsabilidade pela administração fica com os pais.

Segundo dados da Bolsa de Valores, cerca de 40 mil brasileiros de até 15 anos mantêm algum vínculo de investimento, como poupança, Tesouro Direto ou até mesmo ações – o equivalente a 0,18% da população nessa faixa etária no País. No total, a B3 possui R$ 1,01 milhão alocado por esses jovens investidores.

Para Sarai, da Ágora, os dados mostram que a educação financeira engatinha no País e que o tema ainda é pouco discutido com as crianças por diversos motivos, sendo um deles a falta de conhecimento financeiro dos próprios pais. “Essa deveria ser uma matéria primária da grade escolar. Faltam políticas para que isso seja implementado e a educação financeira possa decolar no Brasil”, afirma. •

ESTE TEXTO TEVE A SUPERVISÃO DE VALÉRIA BRETAS

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