Como os cavalos foram domesticados
Fernando Reinach
Quando criança, eu sonhava em ter uma zebra domesticada. Infelizmente, o ser humano nunca conseguiu domesticar zebras. Elas são agressivas e se assustam facilmente. E isso levanta a questão: como nossos ancestrais conseguiram domesticar os cavalos e não as zebras?
Os cavalos foram domesticados 4.500 anos atrás, quase 5 mil anos depois de termos domesticado porcos, vacas, cabritos e carneiros. E muito depois dos jumentos, que já eram usados no transporte de pessoas e mercadorias. A domesticação do cavalo aconteceu nas estepes russas e a análise dos sítios arqueológicos dessa região, do período anterior à domesticação, vê indícios de que os cavalos já eram criados para servir de alimento e para produzir leite. Mas não eram montados.
Algo ocorreu 4.500 anos atrás para que surgissem os cavalos de montaria. Agora, os cientistas descobriram que nessa época surgiu uma única mutação em um dos genes (chamado GSDMC) que permitiu sua domesticação.
Há centenas de esqueletos desenterrados na região em que o cavalo foi domesticado. A descoberta foi feita sequenciando e comparando o genoma de fósseis de cavalos que morreram antes, durante e depois do período em que foram domesticados. Quando surge uma nova mutação numa população (imagine um tigre albino), esse animal é único, e na maioria das vezes a mutação desaparece da população ou persiste em poucos indivíduos. Para ela se propagar na população, precisa trazer alguma vantagem reprodutiva para o animal. Por exemplo, se toda fêmea for atraída pelo macho albino, ele vai ter muito mais filhos que os outros machos. E os albinos, aos poucos, substituem os tigres amarelos.
Esse é o processo de seleção natural descoberto por Darwin. Outro, também descrito por Darwin, é a seleção artificial: criadores de tigres passam a cruzar propositalmente, e preferencialmente, tigres albinos. Logo a frequência dos albinos aumenta.
Comparando o genoma dos fósseis de cavalos da região onde foram domesticados, os cientistas descobriram uma variante do gene GSDMC que se propagou muito rapidamente na população por um período
Sem saber genética, há 4.500 anos nossos ancestrais passaram a reproduzir só os cavalos de montaria
de cerca 200 anos, indicando uma enorme seleção a favor do novo gene no período de domesticação. Hoje, todo cavalo de montaria possui esse gene, e os indivíduos sem a mutação praticamente desapareceram. Só esses dados já sugerem que esse gene deve estar relacionado à domesticação. O interessante é que é um gene conhecido, pois determina a formação e as estruturas das vértebras e dos discos intervertebrais.
No passo seguinte, o estudo produziu ratos transgênicos coma mesma mutação identifica danos cavalos. Os ratos com essa mutaçãopossu emu macoluna vertebral reforçada e aumento no tamanho ena força nas patas dianteiras, o que permite que sofram menos lesões quando sua coluna é submetida a esforços. O gene GSDMC existe em todo mamífero. Em humanos, algumas variantes estão ligadas à doença estenose, da coluna vertebral.
Para os cientistas, a domesticação teve duas etapas. Na primeira, os humanos selecionaram animais dóceis capazes de viver em cativeiro. Mas esses animais não se deixavam montar, talvez por fraqueza nas pernas anteriores (onde se concentra o peso), ou porque a coluna vertebral era mais fraca e os discos, menores, o que poderia causar dor no animal. Mas, em algum momento, surgiu a mutação no gene GSDMC, e nossos ancestrais descobriram que alguns cavalos e seus descendentes serviam como montaria. A partir disso, só esses animais passaram a ser colocados para criar. E, então, todos os animais tornaram-se passíveis de serem montados. Todo cavalo que criamos é descendente desse primeiro grupo.
Sem saber nada de genética, mas sabendo que as características de um animal tendem a passar para sua prole, há 4.500 anos, nossos ancestrais identificaram os mutantes que podiam ser montados e passaram a reproduzir só animais com essas características. E foi assim que surgiu o melhore mais rápido meio de transporte até a invenção do carro. •
INFORMAÇÕES: SELECTION AT THE GSDMC LOCUS IN HORSES AND ITS IMPLICATIONS FOR HUMAN MOBILITY. SCIENCE HTTPS://SCIENCE.ORG/DOI/10.1126/SCIENCE.AD P4581 2025
É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS
PRIMEIRA PÁGINA
pt-br
2025-09-06T07:00:00.0000000Z
2025-09-06T07:00:00.0000000Z
https://digital.estadao.com.br/article/281870124570665
O Estado
