Superproteção dos ‘pais helicóptero’ pode gerar problemas sérios na vida adulta
Encontro promovido pelo ‘Estadão’ reúne especialistas e debate o comportamento de pais que ‘voam baixo’ ao redor dos filhos
OCIMARA BALMANT
Quando a criança tem 2 anos, os pais não a deixam usar o escorregador do parquinho por medo de que se machuque. Aos 7, quando briga com o coleguinha na escola, o assunto é discutido e resolvido por telefonemas entre adultos. Aos 12, quando o boletim escolar registra uma nota baixa, o clima da casa é de luto e indignação.
Aos 25, ao fazer a primeira entrevista de emprego, esse jovem chega acompanhado do pai ou da mãe, preocupados com segurança e performance do filho que precisa brincar num “parquinho de adultos” sem ter tido a chance de, na infância, se machucar na gangorra da pracinha do bairro.
O roteiro acima descreve a rotina dos “pais helicóptero”, como é denominada essa geração de homens e mulheres que estão sempre voando baixo ao redor dos filhos. “A fantasia desses pais nesse desejo gigantesco de acompanhar os filhos é de que vão poupá-los, vão encurtar caminhos. Mas não. Os meninos acabam achando que não têm competência para fazer as coisas. Isso interfere inclusive na formação da identidade”, afirma Claudia Tricate, diretora do Colégio Magno e uma das participantes do Meet Point que o Estadão promoveu ontem dentro do projeto Reconstrução da Educação, para discutir repercussões ocasionadas pela superproteção.
No dia a dia escolar, essa falta de estímulo à autonomia, percebida na primeira infância em inabilidades como não saber amarrar o tênis ou comer sozinho, ganha contornos mais sérios e sutis conforme a idade avança. “Essas crianças criadas por pais superprotetores acabam ficando desprotegidas, não sabem se defender, nem se relacionar. Mesmo porque quando eram pequenas não podiam nem escolher a roupa”, afirma Cláudia, que também é psicóloga.
Tudo isso, não raro, desencadeia doenças mentais como ansiedade e depressão. Gustavo Estanislau, que é psiquiatra da infância e adolescência, explica que do ponto de vista biológico todas as pessoas têm um sentido de alerta que tende a se adaptar na medida em que a criança vive uma situação como a queda de uma árvore, uma nota ruim na escola ou a briga com um colega. Quem é privado dessa experiência tem esse sentido despertado de forma exacerbada com questões que surgem ao longo da vida.
“Pais são tradutores do mundo. Se sou um tradutor assustado, falo indiretamente para meu filho que o mundo é um lugar muito perigoso, e isso gera um senso de alerta maior”, complementa. Sem experiência, muitas possibilidades de construção de autoestima são prejudicadas, o que pode desencadear até um quadro de depressão. “A criança cresce se achando pouco competente para o mundo em que vive.”
ORIGEM DA EXPRESSÃO. Professora da pós-graduação da Faculdade de Educação da USP, Silvia Colello explica que a expressão “pais helicóptero” deve ser interpretada na esteira de dois outros termos: geração canguru e hiperpaternidade
A geração canguru é aquela que não sai de casa, fica na bolsa e demora para se assumir. Já a hiperpaternidade tem relação com a superproteção por conta da expectativa de criar um hiperfilho, que está sob pressão para ser perfeito. “E ele acaba se tornando um hipofilho, aquele que não sabe nem se defender, não sabe que rumo vai tomar.”
E sem dar conta da expectativa criada sobre ele, explica a educadora. “Os pais entram no jogo da educação numa perspectiva competitiva. Como existe uma correlação entre criança bem-sucedida e pessoas bem-sucedidas, os pais querem que os filhos sejam os melhores desde que nascem.”
Muitas crianças e adolescentes crescem acreditando nessa supremacia que, em tese, garantirá um futuro promissor. Uma autopercepção questionada só quando praticamente adultos. Colello diz que, ao chegar à faculdade, aquele jovem que a vida inteira foi o melhor aluno da sala se vê entre iguais, sem ser o destaque. E, não raro, isso gera uma angústia da qual ele não consegue dar conta. “Tem acervo de conhecimento, mas não tem maturidade emocional para viver entre iguais, trabalhar em equipe. Essa frustração tem afastado gente da universidade.”
ESPAÇO PARA A AUTONOMIA. Apesar do prognóstico complicado, é sempre possível ajustar e rever as rotas. “Os pais não devem se sentir culpados, mas abertos a repensar algumas coisas”, afirma o psiquiatra Gustavo Estanislau, pesquisador do Instituto Ame Sua Mente. Um ponto importante é considerar que as crianças precisam desenvolver duas habilidades básicas: regular a emoção e se adaptar ao mundo. Ambas só vêm com a experiência. E vivenciar é se expor aos riscos comuns da idade. “Quando os pais começarem a perceber e viver o desprendimento, a criança voltará para casa superfeliz.”
Como é comum os pais terem dúvida sobre se a forma de agir em determinada situação é ou não superprotetora, a diretora do Colégio Magno sempre
dá uma dica certeira: “Devem pensar: ‘Devo proteger ou preparar?’. Olhar sob essa perspectiva ajuda muito.”
Colello lembra que autonomia é um caminho de mão dupla: envolve orientar, mas também chamar a criança e o jovem para participar das decisões e assumir responsabilidades. “Tem de ter escuta. Os pais precisam escutar antes de falar suas verdades, seus valores e seus projetos de vida. Estar junto é criar afastamento para dar vez para o outro.”
PARCERIA. Para superar o contexto da superproteção e contribuir na formação de cidadãos autônomos, é preciso também superar troca de acusações sobre responsabilidades entre família e escola. “A gente precisa superar essa dicotomia de que escola ensina e família educa. A gente aprende na família e na escola, e é educado na escola e na família. A formação de uma criança tem de ser partilhada entre vários agentes”, diz Silvia Colello. “Não dá para matricular o filho e pensar que a escola fará o resto. E nem o contrário, a escola que não toma atitude diante do bullying, diante da discriminação, dos problemas que acontecem lá.” Por isso, ressalta Claudia Tricate, a escolha da escola precisa ser baseada em comunhão de valores.
“Não é uma questão acadêmica.” No início do ano, a família se conecta com a escola e ao longo do ano vai tirando o crédito dessa decisão. “É uma incoerência, um tiro no pé que os pais dão. Quando a gente começa a criticar o professor e a escola, está criticando a própria escolha”, diz Estanislau.
Depressão ou ansiedade Sem saber se relacionar ou se defender, a criança superprotegida não raro desenvolve doença mental
“Dizem que as crianças não sabem mais se relacionar. Não é que elas não saibam. Elas não conseguem porque sempre tem algum adulto interferindo”
Claudia Tricate
Diretora do Colégio Magno
“Fico muito preocupado com crianças com desempenham muito bom na escola e que não se habituam com o erro. Elas se sentem reféns dessa posição que ocupam dentro de uma sala, de uma família.”
Gustavo Estanislau Psiquiatra
“Atitudes superprotetoras se escondem atrás de comportamentos cotidianos. Pegou o casaco? Comeu direito? Isso vale se a criança tiver 7 anos. Mas pedir a um jovem de 20 que tome cuidado para atravessar a rua já é demais”
Silvia Colello
Professora da pós-graduação da Fac. de Educação da USP
METRÓPOLE
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2024-11-01T07:00:00.0000000Z
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