O Estado de S. Paulo

Com apoio de políticos, gangues ameaçam assumir o controle do Haiti

Figuras políticas estariam cooptando esses grupos para impedir protestos ou forçar o povo a votar de determinado modo; empresários também pagam ‘pedágio’ por mercadorias

PORTO PRÍNCIPE • NYT

As gangues aumentaram seu poder de influência na capital do Haiti, usando escavadeiras para arrasar bairros inteiros, derrotando policiais mal armados e levando sua violência a poucos quarteirões da sede do governo. Em apenas um período de nove dias em julho, pelo menos 470 pessoas foram mortas, feridas ou estão desaparecidas como resultado de uma guerra de gangues em Cité Soleil, a maior favela do país, segundo a ONU.

Embora os haitianos tenham sofrido derramamento de sangue e tragédias implacáveis por anos, a escalada da ilegalidade nas últimas semanas e a incapacidade do governo de exercer controle aterrorizam a nação.

Agências governamentais e ministérios pedem a seus funcionários que fiquem em casa enquanto as gangues expandem seu território e se aproximam do palácio presidencial, do Ministério do Interior, do Banco Central e da penitenciária nacional, onde prisioneiros famintos ameaçam se revoltar, alertam autoridades. Os confrontos entre gangues começaram no bairro de Pierre antes de se espalhar para o centro da capital, Porto Príncipe.

Em Cité Soleil, onde vivem cerca de 300 mil pessoas, gangues que lutam pelo controle da favela estão usando tratores para derrubar casas. Eles ainda estupram mulheres e meninas e matam aleatoriamente, segundo moradores.

PERDA. Uma mulher, Wislande Pierre, disse que perdeu tudo em um único dia. Ela é uma das mais de 3 mil pessoas que fugiram de Cité Soleil em julho, segundo a ONU. Wislande conta que estava em casa por volta das 5 horas quando disse que foi acordada por alguém gritando: “Deixe este lugar! Vocês todos vão morrer! Eles estão vindo!”

O som de metal sendo esmagado, tiros e explosões se seguiram rapidamente. Ela diz ter jogado o que podia em uma mochila para fugir quando escavadeiras destruíram seu bairro. Na sequência, membros de gangues incendiaram o que restara. Mas a irmã de Wislande, Jona, não teve a mesma sorte.

Jona havia deixado sua filhinha de 1 mês na cama naquela manhã enquanto esvaziava penicos da família em uma praia próxima. O marido estava no trabalho. Por dois dias, Jona se refugiou na praia, angustiada com o destino de sua filha, mas incapaz de voltar para casa. Quando os confrontos diminuíram, ela voltou e descobriu que sua casa ainda estava de pé. Mas o bebê tinha sido atingido por sete tiros, que transpassaram as paredes de metal.

Naquela altura, os combates haviam migrado para um cemitério próximo. Incapaz de dar um enterro digno à filha, Jona colocou o corpo em uma caixa vazia de biscoitos e a enterrou na areia. “Ainda estamos vivos, mas não posso dizer que estamos vivos”, disse. “Se isso é vida, o que é o inferno?”

EX-POLICIAL. Uma das gangues que aterrorizam o Haiti, a Família G-9 e Aliados, é dirigida por um ex-policial chamado Jimmy Chérizier, conhecido como Churrasco. De muitas maneiras, Chérizier incorpora as razões pelas quais o Haiti está onde está hoje: as elites políticas e empresariais do país apoiaram gangues concorrentes para alcançar seus objetivos, reduzindo qualquer tentativa de organizar uma nação.

Acredita-se que Chérizier seja apoiado por figuras políticas que buscam reprimir protestos ou forçar o povo a votar de uma determinada maneira. Grandes empresários do Haiti pagam suas gangues para promover seus interesses econômicos, incluindo a passagem segura de suas mercadorias, que chegam aos portos da capital. Os terminais marítimos ficam à beira de Cité Soleil e, como o Haiti importa a maior parte de seus alimentos, combustíveis e outras necessidades, a G-9 pode efetivamente manter todo o país refém, evitando que as mercadorias que chegam ao porto sejam distribuídas por caminhões.

A situação no país tem se deteriorado desde que o presidente Jovenel Moise foi assassinado, em 7 de julho de 2021. Desde então, o Haiti ainda não realizou as eleições para escolha de um novo presidente e a investigação do assassinato também está paralisada há meses.

O uso de gangues pelos agentes políticos do Haiti não é novo. Foi uma ferramenta popularizada pelo presidente Jean-Bertrand Aristide durante seu segundo mandato, que começou em 2001. Na ocasião, as gangues foram usadas principalmente para reprimir uma rebelião contra seu governo.

Depois que Aristide fugiu do Haiti, em 2004, em meio ao caos crescente, uma missão de paz da ONU foi estabelecida para patrulhar Cité Soleil, mantendo as gangues sob controle.

Mas ao longo dos anos, os recursos da missão de paz diminuíram e ela se envolveu em escândalos que mancharam as forças de paz antes de seu mandato expirar em 2019. Desde então, as gangues têm aumentado à medida que seus patronos políticos e empresariais fortalecem seu apoio à disputa pelo poder, segundo vários diplomatas ocidentais e autoridades haitianas. As gangues contrabandeiam grandes quantidades de armas e munições pelos portos do país, remessas facilitadas por funcionários do governo.

ARMAS. Dois altos funcionários do Departamento de Estado dos EUA disseram que Washington estava pressionando as autoridades alfandegárias e portuárias do Haiti para verificar as remessas recebidas. Mas essas remessas geralmente saem da Flórida, sugerindo que as autoridades alfandegárias dos EUA também precisam realizar inspeções mais completas.

“Há uma total gangsterização do país”, disse Pierre Espérance, diretor da Agência Nacional de Direitos Humanos Defense Network. “As grandes famílias do Haiti estão apoiando as gangues para conseguir o que querem. Eles não querem uma situação estável, responsabilidade ou a capacidade dos cidadãos de se organizarem contra eles. Os haitianos são reféns.”

Por causa das violações dos direitos humanos, a polícia haitiana está impedida de receber diretamente armas e munições dos EUA. As gangues, por outro lado, recebem um fluxo constante de armas ilegais e se tornaram praticamente impossíveis de conter. “A polícia está claramente sobrecarregada e desorientada, sem liderança do governo”, disse Fritz Alphonse Jean, líder da oposição. “E só vai piorar.”

Situação piorou após o assassinato do presidente Jovenel Moise; país ainda não elegeu sucessor

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2022-07-31T07:00:00.0000000Z

2022-07-31T07:00:00.0000000Z

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