O Estado de S. Paulo

No Brasil, o turismo médico já começa no aeroporto

Setor movimenta US$ 100 bilhões e avança de 15% a 25% por ano. Brasil é um dos lugares mais procurados

ANDRÉ BERNARDO

Em abril de 2021, o empresário João Fieschi, de 53 anos, desembarcou no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Morador de Connecticut, nos Estados Unidos, ele não veio a São Paulo a passeio ou a trabalho. O motivo de sua estadia foi outro: fazer uma cirurgia bariátrica no Brasil.

João Fieschi é o que a Medical Tourism Association (MTA, na sigla em inglês) convencionou chamar de “turista médico”, ou seja: quando um paciente sai de seu país para fazer exame, consulta ou cirurgia em outro. De acordo com dados da MTA, o turismo médico é uma indústria que movimenta US$ 100 bilhões e cresce de 15% a 25% por ano. “O Brasil é hoje um dos destinos mais procurados da América Latina”, afirma Jonathan Edelheit, CEO da associação.

No ranking latino-americano, ocupamos o quinto lugar. Com um índice de 64.35, estamos à frente de Panamá (62.77), Jamaica (60.74), México (59.47) e Guatemala (55.04) e atrás de Costa Rica (71.73), República Dominicana (66.32), Argentina (66.26) e Colômbia (64.95). No ranking global, caímos para o 28.º lugar. O MTA leva em consideração atratividade, segurança e qualidade.

Entre os países que mais procuram atendimento, Felipe Moura Kaneno, gerente de Relações Internacionais e Corporativas, cita Uruguai, Paraguai e Bolívia e, entre os procedimentos mais requisitados, destaca os tratamentos oncológicos e cardiológicos. “Há pacientes oncológicos que, durante seu tratamento, viajam mais de 20 vezes para São Paulo”, acrescenta Kaneno. Enquanto uns fazem questão de ouvir uma segunda opinião médica, outros não abrem mão de se submeter a cirurgias robóticas, técnica ainda pouco difundida na América Latina.

“Há países que oferecem preços ainda mais baixos. Mas, ao contrário do Brasil, o material é usado duas, três, cinco vezes. Isso aumenta o risco de infecção hospitalar. Aqui, tudo é descartável e só pode ser usado uma única vez” Luís Vicente Barti

Vice-presidente executivo da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM)

MOTIVOS. À época, Fieschi pesava 143 quilos. “Até pensei em operar nos Estados Unidos, mas não deu. Lá, eu teria que passar dos 155 quilos para o seguro de saúde pagar a cirurgia. Ou desembolsar entre US$ 35 mil e US$ 45 mil (algo em torno de R$ 200 mil a R$ 250 mil, na cotação atual) e operar em uma clínica particular. Não tenho esse dinheiro”, admite o engenheiro mecânico que trocou de país em 1999 e hoje trabalha no ramo automotivo.

A saída encontrada foi fazer a cirurgia de redução do estômago a 7.736 quilômetros de casa. No Brasil, ele pagou o equivalente a US$ 9,2 mil (aproximadamente R$ 50 mil), entre passagens aéreas, diárias em hotel 4 estrelas, exames, cirurgia e hospital.

O lado financeiro não é o único a impulsionar o turismo médico. Segundo Luiz Vicente Berti, vice-presidente executivo da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), há outros fatores em jogo. Um dos diferenciais é a qualidade do serviço médico e hospitalar. “No Brasil, não podemos reutilizar material cirúrgico. Tudo é descartável e só pode ser usado uma única vez”, avisa Berti. “Há países que oferecem preços ainda mais baixos. Mas, ao contrário do Brasil, o material é usado duas, três, cinco vezes. Isso aumenta o risco de infecção hospitalar”, alerta.

Segundo o médico, os Estados Unidos são o país que mais “exporta” pacientes para o Brasil – alguns deles são nativos; outros, como o brasileiro João Fieschi, imigrantes. Já México e Colômbia são apontados pelo cirurgião como dois dos mais fortes concorrentes do Brasil no turismo médico de bariátrica.

O “boom” do turismo médico levou o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, a inaugurar, em abril, um espaço de acolhimento para pacientes de outros países no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Entre os serviços, os viajantes podem tirar dúvidas, agendar consultas ou marcar exames em inglês ou espanhol. O hospital, que tem unidades em São Paulo e em Brasília, atende cerca de 14 mil pacientes estrangeiros por ano (Mais informações ao lado).

ESPECIALIDADES EM ALTA. A cirurgia bariátrica não é a única especialidade procurada por estrangeiros. Há pelo menos mais oito, lista Josef Woodman, fundador e CEO da Patients Beyond Borders: cardiologia, odontologia, neurologia, oncologia e ortopedia e, ainda, as cirurgias plástica, cardíaca e da coluna.

Dessas, uma se destaca das demais: a cirurgia plástica. “O Brasil é o eterno lar doce lar do mais famoso cirurgião plástico do planeta”, explica Woodman. Apelidado pela revista alemã Der Spiegel de “Michelangelo do bisturi”, Ivo Pitanguy (1923-2016) operou, entre outros famosos, o piloto austríaco Niki Lauda (1949-2019) e as atrizes italianas Gina Lollobrigida (1927-2023) e Sophia Loren. “Nossos médicos são os mais qualificados e nossos hospitais, os mais seguros e confiáveis”, orgulha-se Volney Pitombo, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP).

Atualmente, só os EUA fazem mais procedimentos estéticos do que o Brasil: 6,1 milhões contra 3,3 milhões. Tais procedimentos costumam ser divididos entre cirúrgicos (2,1 milhões) e não cirúrgicos (1,1 milhão). No primeiro grupo, o mais procurado é a lipoaspiração – a técnica é usada para retirar o excesso de gordura de uma determinada parte do corpo do paciente –, que responde por 14% dos procedimentos. No segundo, a toxina botulínica, o popular “botox”, substância que previne o aparecimento de rugas, por 47,7% dos casos.

Dos 3,3 milhões de procedimentos realizados no Brasil, 14,2% deles, ou seja, 480 mil, são em pacientes de outros países. No caso, as nações que mais procuram o Brasil para fazer cirurgia plástica, de natureza estética ou reconstrutiva, são Argentina, EUA e França. Os dados são da International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS).

QUALIDADE DO SERVIÇO. Se nossos médicos estão entre os mais qualificados do mundo, nossos hospitais estão entre os mais seguros e confiáveis. “De todos os latino-americanos, o Brasil é o país que tem o maior número de hospitais credenciados pela Joint Commission International (JCI)”, afirma Josef Woodman, referindo-se à líder global em certificação de instituições de saúde. “São mais de 60 .”

No Brasil, algumas dessas instituições são o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, e o Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Só no primeiro semestre de 2024, o hospital gaúcho registrou um aumento de 134% na procura por estrangeiros em relação ao mesmo período de 2023. “Já houve casos de pacientes que saíram de seu país por causa da morosidade do sistema de saúde. No Brasil, o atendimento é mais fácil e rápido”, afirma Mohamed Parrini, CEO do Moinhos de Vento.

Fenômeno parecido ocorre no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. “Há casos de pacientes com um bom sistema público de saúde, como os ingleses e os canadenses, mas os prazos são longos e o paciente não quer esperar”, diz Douglas Felipe, gerente de Inteligência de Dados e

‘Legado’ de Pitanguy

Atualmente, só os EUA fazem mais procedimentos estéticos do que o Brasil, que chegou a 3,3 milhões

Sírio tem unidade de acolhimento em Cumbica

Negócios da instituição.

Por essas e outras, o hospital lançou, há dois meses, o Manual do Paciente Internacional, online e trilíngue. Nele, o futuro paciente encontra, nas versões inglês e espanhol, informações sobre consultas, exames e cirurgias e, também, indicações de casas de câmbio a empresas de turismo nas proximidades do hospital. “Somos bastante procurados por pacientes de outros países da América Latina. Mas, por sermos fundados por um grupo de imigrantes de língua alemã, também recebemos pacientes da Europa, principalmente de Alemanha, Portugal e Polônia”, completa Douglas.

O Hospital Israelita Albert Einstein também tem direcionado atenção ao atendimento de pacientes internacionais. Nos últimos 5 anos, a organização identificou um aumento médio de 35% no volume de pacientes estrangeiros, sobretudo nas áreas de oncologia, cardiologia e neurologia; exames de check-up; e segunda opinião em diversas especialidades.

Em relação às nacionalidades que mais procuram o hospital, existe um grande fluxo de pacientes da América do Sul, principalmente de países como Bolívia e Paraguai. •

Frente a uma alta no turismo médico, o Hospital Sírio-Libanês criou uma unidade de acolhimento para os pacientes estrangeiros no Aeroporto de Cumbica (GRU), em Guarulhos. O espaço de 36 metros quadrados fica no corredor de conexão do Terminal 3 para o 2, na área de saguão (fora da área de embarque).

Ao Estadão, Felipe Moura Kaneno, gerente de Relações Internacionais e Corporativas do hospital, conta que o Sírio realiza cerca de 14 mil atendimentos internacionais por ano. “Se pensarmos em uma média mensal, temos registrado um crescimento e estamos realizando entre 1,5 mil e 1,6 mil atendimentos por mês.”

Os viajantes atendidos são principalmente de vizinhos latinos, como Bolívia, Paraguai, Uruguai, Venezuela e Argentina, além de pacientes de Angola (favorecidos pelo voo direto para São Paulo). O hospital também considera como atendimento internacional aqueles oferecidos a brasileiros que possuem seguro de saúde internacional e/ou vivem no exterior, explica Kaneno.

O espaço em Cumbica tem uma equipe trilíngue (que fala português, inglês e espanhol), disponível das 6 às 23 horas, incluindo fins de semana. Dentro do hospital, por sua vez, é oferecido atendimento em outros idiomas, com destaque para o japonês.

Segundo Kaneno, ali é oferecido um “fluxo de acolhimento”. “Conseguimos assessorálos em tudo o que precisam dentro do hospital, como agendamentos e autorizações de procedimentos. E mesmo no momento em que o paciente chega presencialmente: nós o recebemos no desembarque.”

Eles também assessoram os pacientes antes mesmo da viagem. “Organizamos a vinda, identificando a equipe médica mais adequada para o tratamento necessário e fornecendo suporte em relação à rede hoteleira.”

“São Paulo é uma grande capital, com mais de 12 milhões de habitantes. Em comparação, países vizinhos inteiros por vezes têm 3 milhões e meio de habitantes. Esse paciente que vem para cá para fins assistenciais está em um ambiente completamente novo e muito diferente daquilo que vive no dia a dia”, afirma ele sobre a importância da unidade. “Faz com que ele sinta realmente essa segurança e o respaldo necessário durante uma viagem.”

EM EXPANSÃO. O Hospital Sírio-Libanês anunciou que terá uma nova unidade na cidade de São Paulo a partir de janeiro, na região do Morumbi. Será a quarta unidade da instituição na capital paulista, que já conta com prédios na Bela Vista, nos Jardins e no Itaim-Bibi.

Com um investimento de R$150 milhões, a nova unidade terá 10 mil metros quadrados e ocupará nove andares do novo edifício, localizado no complexo “O Parque”, na Avenida Roque Petroni Júnior. O funcionamento vai contemplar o conceito “hospital dia”, onde procedimentos e consultas serão agendados previamente.

A nova unidade contará com centro cirúrgico, serviços de oncologia (como consultas e infusões), consultórios e núcleos de especialidades (saúde da mulher, cardiologia) e laboratório de análises clínicas e diagnóstico por imagem. Haverá também serviços de exames cardiológicos, como monitorização ambulatorial da pressão arterial (Mapa), ecocardiograma, eletrocardiograma, teste ergométrico e holter.

Latinos e africanos Na lista de atendidos estão pacientes de Angola, favorecidos pelo voo direto para São Paulo

“Conseguimos assessorá-los em tudo o que precisam dentro do hospital, como agendamentos e autorizações de procedimentos” Felipe Moura Kaneno

Gerente de Relações Internacionais e Corporativas

Além da nova unidade, a estratégia de expansão da instituição inclui a abertura de 10 a 15 novas clínicas de especialidade nos próximos seis anos. A ideia é definir, até o fim deste ano, cidades do interior de São Paulo e do Centro-Oeste para receber parte das novas sedes especializadas. O programa de expansão do Sírio-Libanês contempla também a ampliação das dependências do hospital de Brasília. •

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