O Estado de S. Paulo

Calor extremo na Europa é como ‘nova covid’ para idosos

Temperaturas elevadas são risco para população vulnerável, que vive sem ar-condicionado ou ventilador

Enquanto uma brisa leve e quente soprava na sala de estar, Donata Grillo, sobrevivente do câncer de 75 anos com marca-passo e sérios problemas de visão, sentou-se ao lado de sua varanda com uma esponja úmida no colo. Era tudo o que ela tinha para se refrescar, quando a temperatura bateu em 41ºC em Roma, na Itália, sua terra natal.

Donata não tem ar-condicionado ou ventilador, nem mesmo uma geladeira funcionando, em seu apartamento de dois quartos em um conjunto habitacional na periferia de Roma. “É a sensação de esticar uma massa o dia todo”, disse.

A visita de uma assistente social foi o único contato que ela teve em dias, já que o calor a deixou presa. “Não vá a lugar nenhum. É muito quente e perigoso”, disse Carlotta Antonelli, de 28 anos, que trabalha para a Caritas.

As ondas de calor que atingiram a Itália e a Europa, na semana passada, forçaram aqueles que podem pagar a buscar abrigo em casas e escritórios com ar-condicionado ou em retiros à beira-mar. Mas, para muitos idosos, o calor se tornou a nova covid.

As temperaturas escaldantes se tornaram outra praga, reforçando o isolamento de muitos idosos e as ameaças à saúde, além de pressionar governos e serviços sociais a tomarem medidas para tentar protegê-los. “Hoje, eles estão ainda mais sozinhos”, disse Antonelli.

À medida que as temperaturas aumentam, a ameaça aos idosos se generaliza, com países do sul da Europa se unindo a outros ao norte, como a Bélgica, para implementar planos de contenção, muitos destinados a proteger as populações mais velhas.

Para a Itália, o calor extremo trouxe à tona a tendência demográfica mais urgente do país – o envelhecimento da população –, revelando uma crise aguda. Cerca de 24% dos italianos têm mais de 65 anos, o que faz do país o mais velho da Europa, e mais de 4 milhões deles vivem sozinhos.

MORTES. No ano passado, a Itália foi exposta a temperaturas extremas por mais tempo do que a maioria dos outros países europeus, suportando três grandes ondas de calor. Quase 30% das 61 mil pessoas que morreram no verão passado eram italianos.

“As pessoas mais velhas com doenças preexistentes são mais vulneráveis”, disse Andrea Ungar, presidente da Sociedade Italiana de Gerontologia e Geriatria. “Mas a pobreza e o isolamento também desempenham um papel crucial.”

O verão mais quente já registrado na Europa, em 2003, deixou mais de 70 mil mortos, segundo estimativas, e desde então a Itália só envelheceu. O país tem lutado para se adaptar. “Já era quente na Itália antes de 2003, e tínhamos uma grande população de idosos, mas não como hoje”, disse Francesca De Donato, pesquisadora de saúde pública. “A cota de pessoas em risco tem crescido constantemente.”

Depois de 2003, a Itália se tornou um dos primeiros países da Europa a implementar um plano nacional para mitigar o impacto do calor extremo, com base nas diretrizes da Organização Mundial da Saúde.

As medidas incluem um sistema de alerta para que as pessoas modifiquem seu comportamento para proteger sua saúde. As autoridades recentemente pediram aos hospitais e médicos que prestem atenção especial às pessoas mais vulneráveis e criaram um número de telefone gratuito onde é possível procurar ajuda para problemas relacionados ao calor.

Os dias de pico de calor ficam marcados em vermelho no boletim diário que o Ministério da Saúde da Itália emite para alertar os moradores. Os canais de TV transmitem periodicamente as orientações, aconselhando as pessoas a permanecerem em casa; usar roupas leves e protetor solar; beber muita água, comer frutas frescas e evitar café e bebidas alcoólicas.

TAXA. A França, que foi poupada das ondas de calor neste verão, tem um imposto para financiar programas para proteger suas pessoas mais vulneráveis, incluindo check-ins regulares por telefone ou visitas pessoais durante as ondas de calor. O país também tem um sistema de alerta de calor, que sucessivos governos ativaram todos os verões desde 2003.

O verão mais quente já registrado matou 15 mil na França, a maioria idosos, vivendo sozinhos em apartamentos na cidade ou em asilos sem ar-condicionado. No verão passado, quando sucessivas ondas de calor atingiram o país, mais de 2,8 mil franceses morreram, cerca de 80% com mais de 75 anos, segundo o governo.

O aumento da temperatura avança para o norte, menos acostumado. Por isso, a Bélgica criou um plano de três etapas, baseado no monitoramento regular da temperatura e dos níveis de ozônio. Em Bruxelas, os idosos podem se registrar por telefone com as autoridades municipais, que os verificarão regularmente assim que as temperaturas passarem de 38ºC.

Os assistentes sociais distribuem bebidas não alcoólicas e verificam as condições. Ainda assim, a taxa de excesso de mortalidade da Bélgica subiu para 5,7% durante os meses mais quentes do verão passado, a mais alta em 20 anos.

Alto risco Enquanto ricos buscam refúgio à beira-mar, pobres se isolam em situação similar à da pandemia

MEDIDAS EXTREMAS. Na Grécia, os sítios arqueológicos fecham entre meio-dia e 17h30, quando as temperaturas passam de 35ºC. O Ministério da Proteção Civil disse que todos os serviços estão “em estado de prontidão para lidar com as altas temperaturas”.

Embora as dificuldades e o isolamento dos mais vulneráveis façam lembrar a luta contra a covid, a pandemia também deixou boas práticas, incluindo visitas e tratamento de pessoas em casa.

Uma lei de 2022, aprovada na Itália, melhorou a coordenação entre serviços de saúde e telemedicina. As autoridades trabalham para ter uma plataforma digital com informações atualizadas do paciente que podem ser acessadas por enfermeiras, médicos, serviços de emergência e hospitais.

“A covid mudou a mentalidade de alguns serviços e isso ajudou muito”, disse Andrea Barbara, autoridade de saúde pública que supervisiona os serviços para um milhão de residentes em Roma. “Fazemos mais telemedicina, estamos movendo cada vez mais equipamentos – e não os pacientes.”

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2023-07-23T07:00:00.0000000Z

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