O Estado de S. Paulo

Um recado devastador para a elite

Abismos sociais levaram a uma perda de confiança e a um sentimento de traição

David Brooks

Entramos em uma nova era. Nos últimos 40 anos, vivemos na era da informação. Nós, que pertencemos à classe instruída, decidimos que a economia pós-industrial seria construída por pessoas como nós e, por isso, adaptamos as políticas sociais para atender às nossas necessidades.

Nossa política educacional empurrou as pessoas para o curso que seguimos, para que fossem qualificadas para os “empregos do futuro”. Enquanto isso, o treinamento vocacional definhou. Adotamos um livre comércio que transferiu empregos industriais para países de baixo custo, para que pudéssemos concentrar nossa energia em empresas da economia do conhecimento administradas por pessoas com diplomas avançados. O setor financeiro e de consultoria cresceu, e o emprego industrial caiu.

A geografia foi considerada sem importância – se capital e mão de obra qualificada quisessem se aglomerar em Austin, São Francisco e Washington, não importava o que acontecia com todas as outras comunidades que ficavam para trás.

As políticas de imigração deram às pessoas com alto nível de instrução acesso a mão de obra com salários baixos, enquanto os trabalhadores menos qualificados enfrentaram uma nova concorrência. Mudamos para tecnologias verdes, favorecidas por pessoas que trabalham com pixels, e desfavorecemos quem trabalha com manufatura e transporte, cujo sustento depende de combustíveis fósseis.

As pessoas que subiam a escada acadêmica eram homenageadas com elogios, enquanto as que não subiam se tornavam invisíveis. A situação era particularmente difícil para os meninos. No ensino médio, dois terços dos alunos entre os 10% melhores são meninas, enquanto cerca de dois terços dos alunos no 10% inferior são meninos. As escolas não estão preparadas para o sucesso masculino – e isso tem consequências para toda a vida, e agora nacionais.

A sociedade funcionou como um vasto sistema de segregação, elevando os academicamente talentosos acima de todos os outros. Em pouco tempo, a divisão de diplomas se tornou o abismo mais importante da vida americana.

Os formandos do ensino médio morrem 9 anos mais cedo do que as pessoas com formação universitária. Eles morrem de overdose de opioides 6 vezes mais rápido. Casam-se menos, divorciam-se mais e têm maior probabilidade de ter um filho fora do casamento. Têm maior probabilidade de serem obesos.

ABISMO. Um estudo do American Enterprise Institute constatou que 24% das pessoas que concluíram o ensino médio, no máximo, não têm amigos próximos. É menos provável que elas frequentem espaços públicos ou participem de grupos comunitários e ligas esportivas do que os universitários. Eles não falam o jargão correto de justiça social.

Os abismos levaram a uma perda de confiança, um sentimento de traição. Nove dias antes da eleição, visitei uma igreja nacionalista cristã no Tennessee. O culto foi iluminado por uma fé genuína, mas também por uma atmosfera corrosiva de amargura, agressão e traição, um povo que se percebe vivendo sob ameaça. Esses americanos não estavam interessados na alegria de Kamala Harris e dos outros formandos em faculdades de direito.

O Partido Democrata tem uma função: combater a desigualdade. Aqui havia um grande abismo e muitos não viram. Muitos da esquerda se concentraram na desigualdade racial, de gênero e LGBT. É difícil se concentrar na desigualdade de classe quando se estudou em uma faculdade cara e se faz seminários de diversidade para uma grande empresa. Trump é um narcisista monstruoso, mas há algo de estranho em uma classe instruída que se olha no espelho da sociedade e só vê a si mesma.

Enquanto a esquerda se voltava para a arte performática identitária, Trump entrou com os dois pés na guerra de classes. Seu ressentimento contra as elites se encaixou magicamente na animosidade de classe sentida pela população rural. Sua mensagem era simples: essas pessoas traíram você e são idiotas.

APOIO. Em 2024, ele construiu o que o Partido Democrata tentou no passado, uma maioria multirracial da classe trabalhadora. Seu apoio aumentou entre negros e latinos. Ele registrou ganhos surpreendentes em New Jersey, Bronx, Chicago, Dallas e Houston. Trump obteve um terço dos eleitores negros. Ele é o primeiro republicano a vencer no voto popular desde 2004.

Obviamente, os democratas precisam repensar bastante. Biden tentou atrair a classe trabalhadora com subsídios e estímulos, mas não há solução econômica para o que é uma crise de respeito. Haverá alguns na esquerda que dirão que Trump venceu por causa do racismo, sexismo e autoritarismo inerentes aos americanos. Aparentemente, essas pessoas adoram perder e querem fazer isso de novo – e de novo.

O restante de nós precisa olhar para o resultado com humildade. Os americanos nem sempre são sábios, mas são sensatos e têm algo a nos ensinar. Sou moderado. Gosto quando os democratas vão para o centro. Mas Kamala fez isso e não funcionou. Talvez os democratas precisem de uma ruptura no estilo de Bernie Sanders, o que fará com que pessoas como eu se sintam deslocadas.

Os democratas podem fazer isso? O partido das universidades, dos subúrbios ricos e dos núcleos urbanos? Bem, Trump sequestrou um partido corporativo, que não parecia ser veículo para a revolta proletária, e fez exatamente isso. Aqueles que são condescendentes com Trump deveriam se sentir humildes. Ele fez algo que nenhum de nós poderia fazer.

Mas estamos em um período novo. Trump é um semeador do caos, não do fascismo. Em breve, uma praga de desordem se abaterá sobre os EUA. Se você odeia a polarização, espere só até experimentarmos a desordem global. Mas no caos há oportunidade para uma nova sociedade e uma nova resposta aos ataques de Trump. Estes são tempos que testam a alma das pessoas, e veremos do que somos feitos. •

Do caos surge uma chance para uma nova sociedade e uma nova resposta aos ataques de Trump

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2024-11-08T08:00:00.0000000Z

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