O Estado de S. Paulo

Residência tem menos vagas e pós EAD avança em Medicina

Estudo da USP e Associação Médica Brasileira (AMB) aponta que cerca de 40% das pós para médicos são oferecidas como ensino a distância

ISABELA MOYA

Enquanto médicos recém-formados enfrentam cada vez mais dificuldade para entrar em uma residência e obter o título de especialista, cresce o número de pós-graduações lato sensu em Medicina. E, do total, 40% são de ensino a distância (EAD), segundo os resultados preliminares do estudo Demografia Médica no Brasil 2025, feito pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) em parceria com a Associação Médica Brasileira (AMB).

Dentre quase 2 mil cursos de pós-graduação em Medicina analisados pelo levantamento, quase metade (927) é presencial e há pouco mais de 40% (800) remotos. Outros 216 (11%) são semipresenciais. Esse cenário surge em meio à falta de vagas de residência para todos os médicos formados, em contraposição ao aumento de graduações abertas na última década. Hoje, são mais de 260 mil médicos generalistas (quase metade do total de 575 mil profissionais com essa formação). Ou seja, 260 mil não têm título de especialista.

Parte disso é atribuído ao déficit de oportunidades: em 2022, quando se formaram 25,5 mil médicos e, no ano seguinte, havia só 16 mil vagas para residência em diferentes especialidades, segundo o coordenador da pesquisa, Mário Scheffer. Conforme o professor da USP, “a residência é a modalidade mais adequada de se formar médicos especialistas”.

A oferta de residência é mais efetiva que a graduação para fixar esses médicos fora dos grandes centros urbanos, onde há carência de profissionais, afirmam especialistas. Procurado, o Ministério da Educação (MEC) não informou se tem planos para a expansão de vagas de residência.

O déficit de quase dez mil vagas – considerando só recém-formados – ajuda a abrir mais espaço para as pós-graduações. Esses cursos de menor duração viram alternativa para quem não consegue entrar em uma residência por causa da alta concorrência ou da dificuldade de se manter somente com a bolsa de residente (R$ 4.106, valor líquido).

A especialização não é obrigatória na Medicina. Os generalistas podem atuar em diversos campos, geralmente na área clínica (consultórios, não cirurgias), como em unidades básicas de saúde, na atenção primária, em Medicina da Família e do Trabalho. Mas, apesar do nome “especialização” dado às pósgraduações em geral, na Medicina esses cursos não dão ao médico o título de especialista.

Para ser especialista, é preciso cursar uma residência (o que confere automaticamente o título) ou, no caso de médicos sem residência (com ou sem pós), passar na prova da Sociedade Médica da especialidade.

“Um médico que faz só pósgraduação em Dermatologia não é, automaticamente, um dermatologista. Só é dermatologista o médico que concluiu a residência em Dermatologia ou que fez a prova e foi titulado pela Sociedade Brasileira de Dermatologia. São as duas únicas formas. Mas em algumas especialidades, como na Neurocirurgia, só se tornam neurocirurgiões aqueles que concluíram a residência em Neurocirurgia”, explica Scheffer.

A diferença entre as duas modalidades está na regulamentação, que é mais rígida e obriga maior duração para a residência do que para a pós. Na primeira, há obrigatoriedade de uma parcela de atividades presenciais e da união de teoria e prática.

Dentre os mais de 2 mil cursos de pós lato sensu em Medicina analisados na pesquisa, as áreas mais frequentes são Endocrinologia e Metabologia, Dermatologia, Psiquiatria, Radiologia e Diagnóstico por Imagem e Hematologia e Hemoterapia.

PÚBLICOS DIFERENTES. Além das diferenças de conteúdos abordados e formato de ensino, a residência e a pós parecem atrair públicos diferentes: os residentes têm dedicação em tempo integral e recebem bolsas de estudo (pagas pelo governo, no caso de instituições sem fins lucrativos, e pelos hospitais ou faculdades, nas instituições privadas com fins lucrativos).

Já os pós-graduandos geralmente pagam mensalidade (por se tratar, em sua maioria, de faculdades privadas) e precisam dedicar carga horária semanal menor ao curso, permitindo ao médico conciliar o estudo com o trabalho.

Para poder se capitalizar com plantões e atendimentos, muitos recém-formados não entram nas residências imediatamente após a graduação. Assim, a pós se torna uma alternativa para continuar os estudos enquanto recebem renda maior do que teriam com a bolsa da residência.

Diretor de graduação em Medicina da Faculdade São Leopoldo Mandic, Guilherme Succi avalia que os médicos da geração atual têm olhado para outras opções além da residência, diferentemente do passado. “As vagas de residência médica para algumas áreas, como Psiquiatria, Dermatologia e Endocrinologia, são muito restritas e estes médicos desejam iniciar seu aprendizado com maior brevidade. O médico vai para o mercado de trabalho logo após a graduação e percebe a necessidade de aprofundar conhecimentos, para ofertar atendi

mento de melhor qualidade aos pacientes”, afirma o diretor da faculdade, que oferece 500 vagas anuais de pós em Medicina e 33 vagas anuais em residência médica.

O estudo da USP identificou o preço de 878 cursos, o que corresponde a 40% das pós em Medicina comercializadas. Desses, o valor médio cobrado por todo o período do curso foi de R$ 15.782 e a mediana, de R$ 2,8 mil, indicando variação muito grande das mensalidades a depender da faculdade e da área.

Cursos nas especialidades cirúrgicas apresentaram os maiores valores, com média de R$ 27.239,99 (soma de todas as mensalidade), enquanto os demais custavam, em média, R$ 13.553.

A modalidade e a localização das pós também afetam os preços. Cursos online são significativamente mais baratos (R$ 5.696, em média) em relação aos presenciais (R$ 26.310) e aos semipresenciais (R$ 26.566). Já aqueles ofertados nas capitais custam, em média, o dobro (R$ 20.080) dos cursos localizados nas demais cidades (R$ 9.328).

APOSTA DOS GRANDES GRUPOS EDUCACIONAIS. O surgimento de novas pós médicas é uma aposta dos grandes conglomerados educacionais para preencher a lacuna entre a quantidade de recém-formados e de vagas em residência. Se as graduações em Medicina já são um negócio bilionário, com

“Um médico que faz só pós-graduação em Dermatologia não é, automaticamente, um dermatologista”

Mário Scheffer

Professor da USP e coordenador da pesquisa

“O desafio é construir a credibilidade, pois historicamente os programas de pós-graduação médica têm uma reputação inferior aos programas de residência, considerados ‘padrão ouro’ na Medicina”

Silvio Pessanha

Presidente do Inst. de Educ. Médica (Idomed) da Yduq

altas mensalidades e baixas taxas de evasão e inadimplência, a educação continuada na Medicina também é promissora

Segundo o estudo da USP, grupos como Afya, Yduqs e Cogna têm a maior parte das pós na área, assim como acontece com as graduações médicas particulares.

“Aumentando o portfólio, a oferta de cursos de pós-graduação médica auxilia na retenção de alunos pelo fato de eles já vivenciarem aspectos ligados a pós-graduação, como linhas de pesquisa, experiências práticas e oportunidades de qualificação do currículo, pensando em stricto sensu, por exemplo. Fora o fato de poderem emprestar reputação e contribuir para a consolidação da qualidade da instituição e, consequentemente, da captação de novos alunos”, diz o presidente do Instituto de Educação Médica (Idomed) da Yduqs, Silvio Pessanha.

Mais Médicos Lei atrelou a criação de vagas de graduação ao financiamento de vagas na residência

A receita de Medicina da Yduqs (dona de cursos como os da Estácio, Fameac e Fapan) com o segmento de educação continuada cresceu nos últimos anos, mas Pessanha ainda enxerga “enorme oportunidade” à frente.

Por um lado a flexibilidade de formato das pós aumenta o alcance desses cursos. Mas, por outro, o executivo reforça a importância de estruturar programas de qualidade, com carga horária robusta e oportunidades reais de vivência e atendimento médico, mesmo em ambiente menos regulado, onde não há essas obrigatoriedades.

“O desafio é construir a credibilidade, pois historicamente os programas de pós-graduação médica têm arrastado uma reputação inferior aos programas de residência, considerados ‘padrão ouro’ na Medicina”, diz Pessanha.

POR QUE FALTAM RESIDÊNCIAS MÉDICAS? A escassez de vagas de residência médica ocorre pela dificuldade das instituições de ensino e de saúde de expandir a sua capacidade de serviços, de acordo com Scheffer. “A residência exige capacidade dos serviços de ter um hospital de ensino, infraestrutura, preceptores e supervisores altamente capacitados para acompanhar os residentes”, afirma o professor da USP.

“Exige ampliação da capacidade física de receber residentes em serviços que estejam preparados para essa finalidade. Não é qualquer hospital, precisa estar credenciado como hospital de ensino, e também exige financiamento para atribuir as bolsas aos médicos”, acrescenta.

O valor da bolsa de residência médica é padronizado (R$ 4.106). Como a maior parte das vagas é oferecida por instituições públicas (como universidades públicas e hospitais universitários) ou filantrópicas (sem fins lucrativos), elas são financiadas majoritariamente com recursos públicos, seja de governo federal ou estadual. Diferentemente das pós-graduações, uma parcela pequena de residências está em instituições privadas, que precisam arcar com o valor das bolsas.

“O financiamento é absorvível, é um bom investimento, o SUS tem recursos. Aumentar a oferta de bolsas não me parece ser o maior problema, é mais como expandir uma residência com qualidade”, afirma Scheffer. “O governo tenta incentivar, oferece ampliação de bolsas para vagas, mas enquanto a graduação cresce, há certo congelamento da capacidade de formar especialistas pela residência, o que nos leva a crer que há limite da capacidade instalada (dos hospitais) para receber residentes”.

A Lei do Mais Médicos, de 2013, atrelou a possibilidade das instituições de ensino de criarem vagas de graduação na área à obrigatoriedade de financiar vagas de residência como contrapartida. Apesar disso, cresceram muito mais as vagas em graduação do que as em residência (em parte por causa da judicialização de cursos que foram abertos fora do edital).

Pessanha, da Yduqs (que oferece 155 vagas anuais em residência médica), explica que parte das vagas ofertadas pelas instituições particulares de ensino médico se refere à obrigatoriedade atrelada às graduações em Medicina do Mais Médicos; e as demais têm o objetivo de “ampliar a reputação da faculdade, integrar com o internato e produzir pesquisas científicas”, dentre outras finalidades.

“Instituições obtêm autorização para abrir vagas, mas diante da ausência de financiamento das bolsas, desistem ou ofertam menos postos do que sua real capacidade, já que, além dos fomentos federais, Estados, municípios e hospitais filantrópicos e privados financiam bolsas de residência em seus próprios serviços”, acrescenta Pessanha.

Outro problema, ele relata, é a baixa remuneração ou a falta de preceptores, os profissionais médicos encarregados de supervisionar e orientar residentes durante a formação. •

METRÓPOLE

pt-br

2025-02-02T08:00:00.0000000Z

2025-02-02T08:00:00.0000000Z

https://digital.estadao.com.br/article/281801404653996

O Estado