Pais se envolvem cada vez mais na vida dos filhos na faculdade
Pedidos de revisão de notas e até de interferência em namoros estão mais comuns no ensino superior pós-pandemia.
RENATA CAFARDO
Um pai entra na sala de professores da faculdade e exige que o docente reveja a nota dada para a filha. Em outra instituição, a mãe quer que o coordenador do curso faça com que o filho pare de faltar às aulas para ver a namorada. E outros tantos buscam as universidades para saber do desempenho dos filhos. São histórias reais e cada vez mais comuns no ensino superior, em especial privado. Mas especialistas alertam que limites são necessários para preservar autonomia dos jovens
No Insper, as famílias são recebidas desde o vestibular e há reuniões com os pais dos calouros. “É uma das estratégias para lidar com a situação, passar segurança da formação que pretendemos dar, mostrar a estrutura, mas estabelecer limites e dizer que o aluno tem autonomia para resolver os problemas dele”, diz o presidente do Insper, Guilherme Martins.
A instituição tem também um canal para que os pais possam entrar em contato em caso de problemas de saúde física ou emocional dos filhos e para tratar de questões financeiras. Sobre desempenho e nota, Martins pede que os pais conversem com os alunos. “Costumo dizer para as famílias: se tudo der certo, nos vemos na formatura. É preciso entender que a universidade é um ambiente de experimentação e o erro gera aprendizados importantes para que se cometam acertos na vida profissional.”
As universidades também são unânimes em dizer que blindam os professores. “O coordenador está treinado para atender a família. Conteúdo de disciplina não deve ser discutido com os pais”, diz o diretor acadêmico da Facamp, Rodrigo Sabbatini. “Professor não, a função dele é lidar com aluno como estudante no processo de aprendizagem; quando coloca o pai no meio, ele é cliente”, diz Martins.
Mesmo assim, alguns conseguem e-mails ou telefones dos professores e tentam conversas diretas. “Coloquei o telefone da minha mãe em um papel e disse para passar para a mãe do aluno que queria falar comigo. Porque mãe com mãe se entende. Eu só falo com o aluno”, diz o professor de uma faculdade privada Adrian Cernev, sobre a insistência de uma mãe que ligou no seu departamento. “São pais que querem atuar diretamente, em vez de instruir os filhos sobre como buscar alternativas, postergando a adolescência. As universidades têm caminhos formais para o aluno resolver problemas.”
NAMORO. Ex-coordenador de cursos de Comunicação, Franklin Valverde conta que um casal certa vez marcou reunião para questioná-lo por que o filho havia sido reprovado. O aluno vinha faltando às aulas para sair com a namorada. “A mãe então me falou: vocês o aceitaram, agora vocês que se virem, têm que cuidar.”
A superintendente acadêmica do Centro Universitário Belas Artes, Josiane Tonelotto, diz que já foi procurada até por pais de alunos da pós-graduação. A instituição dá aos pais um login na plataforma virtual da faculdade, mas afirma que as famílias “confundem responsável financeiro com responsável pelas notas”. “Aí a gente diz que o filho tem 18 anos e que não pode informar sobre desempenho. É uma geração mais suscetível a inseguranças, incapaz de resolver problemas, que suporta menos as diversidades, uma fragilidade piorada pela pandemia.”
MAIS TRANQUILIDADE. O farmacêutico bioquímico Luís Henrique Garcia Muniz, de 58 anos, diz que ficou “encantado” com a recepção que recebeu na Belas Artes assim que a filha ingressou no curso de Moda. “Fizeram um café para tirar dúvidas, falaram do projeto, indicaram o canal para comunicação. Eu estava apreensivo da minha filha estudar sozinha em São Paulo e fiquei mais tranquilo”, afirma ele, que mora no Paraná. A filha Ana Luísa, de 18 anos, diz que passa as notas e os boletos para o pai. “Ao mesmo tempo que eu quero mais independência porque estou começando agora uma vida adulta, fico feliz de eles (os pais) estarem me dando suporte financeiro e emocional.”
Na Facamp, os pais são procurados quando o desempenho do filho está aquém do esperado para “não serem pegos de surpresa”, diz Sabbatini. “Percebemos que havia uma mudança na sociedade, com alunos mais imaturos, é preciso enfrentar isso como um problema pedagógico.”
“Desde o início me chamou a atenção como fomos recebidos, levando os pais para dentro da instituição”, diz a empresária Jussara Antonietto, de 60 anos, cuja filha se formou na Facamp ano passado. A jovem enfrentou um câncer durante o curso e, para a mãe, a fácil comunicação com a instituição foi essencial durante o tratamento. Já no curso do filho, em outra faculdade, ela reclama que não conseguiu sequer negociar as mensalidades. “Disseram que só poderia fazer se meu filho autorizasse.”
PAPEL PASSIVO. Para o psiquiatra da infância e adolescência Miguel Angelo Boarati é compreensível que os pais ajudem na escolha da carreira, mas interferir nos processos da faculdade prejudica o desenvolvimento da autonomia, que já deveria ter começado antes. “Desde os 3 anos o pai já pode dar a responsabilidade da criança guardar seu brinquedo. Com 10, 11 anos, escolher a roupa, tomar banho.”
“Quando a exposição a conflitos é evitada no ensino médio, com pais mediando as dificuldades, o jovem chega ao ensino superior em um papel passivo”, afirma o psicólogo clínico e professor no Instituto Par Ciências do Comportamento, Rodolfo Dib. Em situações como essas, os pais acabam tendo de continuar presentes. “Mas eles precisam ir transferindo para o estudante o papel principal na condução de situações importantes para se tornarem profissionais independentes.”
O pró-reitor da Fundação Getulio Vargas (FGV), Antonio Freitas, lembra que o aluno precisa desenvolver autonomia para o “mundo do trabalho, complexo e em contínua mutação”. “No ensino superior, ele vai adquirir habilidades socioemocionais, saber lidar com superiores, com pares. Quando o pai interfere, prejudica o crescimento do aluno.” Algumas escolas da FGV também têm reuniões de pais.
Nos Estados Unidos Livro liga a situação a pais medrosos e superprotetores, além do impacto das redes sociais
“Coloquei o telefone da minha mãe em um papel e disse para passar para a mãe que queria falar comigo. Porque mãe com mãe se entende. Eu só falo com o aluno”
Adrian Cernev
Professor
“Quando o pai interfere, prejudica o crescimento do aluno”
Antonio Freitas
Pró-reitor da FGV
AMERICANOS ‘MIMADOS’. O fenômeno não é exclusivo do Brasil e é discutido no livro The Coddling of American Mind, How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure (O mimo da mente americana, como boas intenções e más ideias estão preparando uma geração para o fracasso, em tradução livre). Os autores refletem sobre os câmpus universitários atuais, com pouca tolerância para opiniões diferente e altas taxas de ansiedade e depressão. Creditam isso a alunos que tiveram pais medrosos, superprotetores, além do impacto das redes sociais.
Na Universidade de Stanford, há canais específicos para pais e até informações sobre como mandar um bolo de aniversário para o filho. Harvard oferece programação especial aos fins de semana. “Experimente Harvard pelos olhos de seu filho. Participe de cursos e de discussões com professores”, diz o texto do departamento de famílias.
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