Em rede social, furtar faz sucesso e banaliza o transtorno de cleptomania
Comunidade virtual #clepto reúne jovens que postam fotos de produtos furtados de lojas e exaltam o crime; especialistas em saúde mental descartam relação com a doença
VICTÓRIA RIBEIRO
“Comecei no clepto há duas semanas e descobri que sou mão leve. Mirtilagem de hoje foi melhor do que eu esperava”, postou Juliana (nome fictício) em seu perfil na rede social Bluesky. Na publicação, ela exibe os itens furtados em uma única ida ao shopping, usando uma bolsa com fundo falso. Entre os objetos estão roupas, doces, itens de maquiagem, perfumes e artigos de papelaria. “Tudo isso deu R$ 1.695,60. Já estou ansiosa pela próxima,” acrescentou.
O perfil de Juliana segue o padrão de muitos jovens que estão na comunidade #clepto, uma referência à cleptomania, transtorno psiquiátrico marcado por uma vontade incontrolável de furtar: a foto de perfil é um personagem de anime (animação japonesa) e, em sua descrição, há emojis de rato e mirtilos, símbolos que identificam e unem os membros que costumam compartilhar suas “colheitas” e “mirtilagens”: furtos geralmente realizados em perfumarias, farmácias, papelarias, supermercados e lojas de departamento.
No Brasil, o furto é crime e, conforme o Código Penal, pode resultar em pena de reclusão de um a quatro anos, além de multa. Apesar disso, a troca de informações entre os “mirtileiros” ocorre de forma pública e sem qualquer pudor, já que muitos perfis não são privados.
Além de ostentar as aquisições ilegais, os participantes compartilham dicas sobre como despistar “formigas” (seguranças, no dialeto #clepto), desativar alarmes em roupas, enganar vendedores que realizam contagem de peças e evitar possíveis abordagens. Também são postadas indicações de lojas consideradas fáceis de furtar, horários menos vigiados, sugestões de vestimentas para passar despercebido e tutoriais detalhados sobre o que fazer ou não em caso de flagrante, geralmente escritos por pessoas que já passaram por essa situação.
Embora a tendência não seja exclusivamente brasileira, marcando presença também em países como Espanha e Estados Unidos, as “mirtilagens” têm gerado repercussões inusitadas por aqui. Com mais de 100 mil visualizações no YouTube, uma música chamada Clepto Girls fala sobre as garotas que geralmente furtam roupas e lingeries rendadas, itens da cultura japonesa (como mangás), ursos de pelúcia e produtos de skincare. Alguns itens, como objetos da Hello Kitty e brinquedos da linha Sylvanian Families, são tendências entre elas. “Me chamam de problema, mas quem vai julgar, se é tão fácil pegar e sair sem pagar?”, diz a letra da música, que tem inspirado coreografias no TikTok.
‘PARECIA ALGO FÁCIL’. Ao Estadão, Camila (nome fictício) conta que o movimento #clepto começou na rede social X, antigo Twitter. Segundo ela, algumas pessoas se tornaram conhecidas justamente por isso, ganhando o status de veteranos ou, em alguns casos, de “clepto mommy” (algo como “mamãe clepto”). Camila também relata que a maioria dos participantes tem entre 13 e 20 anos e não enfrenta dificuldades financeiras, sendo majoritariamente de classe média alta. “No meu caso, comecei a furtar depois de ver outras pessoas fazendo. Os posts me deram segurança, parecia algo fácil”, explica.
Palavra do especialista
Pessoas com cleptomania se sentem envergonhadas; não é o caso das que postam fotos dos furtos
Já Alana (nome fictício) relata que começou a furtar aos 13 anos, pouco antes de se unir ao grupo nas redes sociais. “No começo, pegava uma coisinha ou outra, tipo um óleo de cabelo ou um chocolate, mas não compartilhava.”
Na última foto que postou no Bluesky, porém, ela mostra itens de papelaria, produtos de cabelo e skincare, além de doces importados, totalizando R$ 900 em furtos. “Agora que já completei quase todos os itens da minha lista de metas, pode ser que eu pare logo, porque, no fundo, vai contra meus ideais”, afirma Alana.
Questionada sobre suas motivações, ela diz que gosta de compartilhar experiências com outros “mirtileiros”, e também se diz motivada pelas “falhas no sistema capitalista”. “É um sistema bizarro que te faz pagar um valor altíssimo por um produto de qualidade boa, mas não excelente. Ou a gente rala, ou a gente furta”, justifica. Ela também informa que, apesar de não ser uma regra, a maioria dos participantes evita furtar em lojas pequenas. “Os donos dessas grandes lojas são milionários, não faz diferença para eles. Agora, nas lojas menores, nem penso em pegar nada”, diz.
CLEPTOMANIA. Apesar de a comunidade fazer alusão à cleptomania, o psiquiatra forense Guido Palomba afirma que a associação é completamente equivocada. Ele explica que a cleptomania é um transtorno mental sério e que envolve uma perda de controle sobre os impulsos, levando o indivíduo a sentir um desejo intenso de furtar objetos, mesmo que isso cause sofrimento.
“As pessoas com cleptomania têm consciência de que o furto é errado, mas lutam contra esses pensamentos e, em um determinado momento, acabam cedendo”, explica.
Essa luta interna, segundo o psiquiatra, que é diretor cultural adjunto da Associação Paulista de Medicina (APM), pode ser tão desgastante que acaba gerando um sofrimento profundo, uma vez que o ato impulsivo resulta em arrependimento e culpa.
Já a dinâmica observada na comunidade #clepto é diferente. Isso porque os participantes geralmente planejam suas ações, selecionando lojas, horários e elaborando listas e metas sobre aquilo que pretendem furtar. “Não é uma manifestação de um transtorno mental, mas uma tentativa de imitar comportamentos associados a uma condição séria, visando benefícios pessoais e o desejo de pertencimento”, afirma.
‘AUSÊNCIA DE VERGONHA’. O psiquiatra Elton Kanomata, do Hospital Israelita Albert Einstein, complementa que pessoas diagnosticadas com cleptomania quase sempre se sentem envergonhadas, diferentemente das que compartilham fotos dos furtos nas redes sociais.
“Essas publicações demonstram a ausência de qualquer sentimento de culpa ou vergonha. Na verdade, há uma exaltação e até uma hierarquia, na qual aqueles que furtam mais se tornam mais evidentes”, destaca. Para o especialista, essa situação reforça o estigma já associado à doença. Como resultado, pessoas que realmente sofrem com o transtorno acabam injustamente rotuladas como pessoas de má-fé.
Procurada, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo disse não haver “registros desse tipo de crime junto à Polícia Civil, que iniciou uma investigação preliminar por meio do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic)”. A reportagem também solicitou um posicionamento do Bluesky, mas não houve resposta. •
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2024-10-28T07:00:00.0000000Z
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