A Rússia na contramão da História
Podemos ver a invasão da Ucrânia como uma manifestação tardia de um estilo de colonialismo que, por completo, o Ocidente já abandonou
Claudio de Moura Castro PH.D., CONSULTOR INDEPENDENTE, É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO
Lemos sobre a guerra na Ucrânia. Os tanques russos explodem. E admiramos as proezas dos novos drones. Mas, para entender o conflito, é preciso ver o quadro mais amplo, tomando distância. É de binóculos, para entender a História.
Ao longo da nossa evolução, grupos humanos mais fortes e atrevidos invadiam os quintais de seus vizinhos. Assim nasceram os países, congregando, sob um só comando, muitos ajuntamentos humanos. Foram muitas as aventuras de tomar a terra dos outros. A Grécia ocupou bons pedaços do Mediterrâneo. Roma ocupou muito mais. Os vikings andaram por todo lado, mas como eram poucos, apenas se fixaram no norte da Inglaterra e na Normandia. Tamerlão, na Ásia Central, invadiu a Rússia, a China, a Índia e andou nas beiradas da Europa. Os otomanos avançaram, com sucesso, sobre os países árabes.
Porém, todas essas façanhas foram ofuscadas pelo que começa com as navegações europeias, a partir do renascimento. Ninguém dominou tantas léguas de litoral quanto os portugueses. Foram seguidos pelos espanhóis, holandeses, ingleses e franceses. Sob o controle de alguns poucos países da Europa ficaram as Américas, a África e boa parte da Ásia e Oceania – quase o mundo inteiro.
Chamemos de colonialismo ou imperialismo, não importa o nome. O fato é que a Europa dominou o mundo, administrando colônias por toda parte.
Ao longo do tempo, muitas dessas colônias foram se robustecendo. E vieram com os colonizadores alguns valores da civilização ocidental. Por toda parte, as ideias herdeiras do iluminismo fincaram pé. Ganharam vigência e força a democracia, o império da lei, a liberdade e a autodeterminação. Antes, não passavam de conceitos, escondidos em livros obscuros. E o anticolonialismo ganha porta-vozes.
Começa, então, um movimento inverso. Ainda no século 18, separam-se os Estados Unidos da Inglaterra. No seguinte, as colônias da América Latina conquistam a sua independência. No século 20, é a vez do mundo árabe, da África e da Ásia (Índia, Indochina e Indonésia). O colonialismo definhou. Hitler foi um infeliz retrocesso, mas durou pouco.
No atual século, praticamente não há países que não sejam – com ou sem competência – governados por suas próprias gentes. E, após as guerras, é esperado que se retirem os exércitos invasores. Foi o caso do Japão e da Alemanha. Encerrou-se o ciclo, com cerca de 200 nações independentes. O que restou foram as travessuras imperialistas, mas sem ocupação territorial permanente.
Porém há um país que anda na contramão da História. Como o resto da Europa, manu militari, a Rússia expandiu as suas fronteiras. Iam do Alasca até o Báltico e o Mar Negro. Após a Segunda Guerra, foram anexados os países do Leste Europeu. Depois que os europeus voltaram para casa, a Rússia continuou tomando a casa dos outros, ignorando o espírito dos novos tempos.
Diante da debacle da União Soviética, escapolem as nações da Ásia Central e do Leste Europeu. Porém, o novo czar russo, Vladimir Putin, não se conforma com as perdas. Declara, explicitamente, a vigência do velho expansionismo czarista.
Consideremos também que a atual Rússia é uma anomalia nos nossos tempos, em que quase todos os países são formados por grupos bastante homogêneos. Os poucos misturados, como Bélgica e Canadá, são habitados por culturas próximas e que aprenderam a conviver com a sua dualidade. É também o caso da Alsácia, que pendula entre a Alemanha e a França.
Mas não é o caso da Rússia que agrega cerca de 70 etnias, 50 línguas e várias religiões. De origem, a Rússia era uma nação eslava. Porém, conquista a Sibéria, populada por mongóis, com suas línguas e tradições. No sul do país, são incorporados países de tradições balcânicas e turcas, quase todos muçulmanos. Geórgia e Armênia são habitadas por outros povos. Tornam-se todos, como se fossem, “colônias” dos eslavos, pois a integração permanece limitada. Dada a pouca legitimidade da autoridade central para governá-las, entra em cena a mão de ferro de Moscou. A Chechênia não se conforma. Volta e meia, se revolta.
Diante desse quadro, podemos ver a invasão da Ucrânia como uma manifestação tardia de um estilo de colonialismo que, por completo, o Ocidente já abandonou. Quando pensamos em tribos isoladas que ainda praticariam a escravidão, caberia um relativismo nos nossos julgamentos? Podemos condenálas? Não deveríamos também aceitar a Rússia, com seus valores, apesar de desalinhados com o presente?
Não! Vivemos sob princípios disseminados em todas as sociedades modernas. Somos herdeiros do iluminismo, incluindo a concepção de formas de governança, de direitos e de valores cívicos. Queremos acreditar que essa foi uma conquista irreversível.
Sendo assim, não há espaço para quaisquer transigências. Não estamos lidando com tribos longínquas, perdidas na Amazônia ou em Bornéu. A Rússia é um país que brilhou na literatura, na música, nas artes visuais, nas ciências e nas tecnologias militares. Teve ampla exposição às tradições da civilização ocidental. Não há por que perdoá-la pelo atraso na sua cultura política. É inaceitável que as suas lideranças ignorem essa herança e proclamem uma visão obsoleta de dominação colonial.
O ESTADO DE S. PAULO
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