O Estado de S. Paulo

Quando a crise financeira vai chegar?

Em grande parte porque o governo está focalizado na reeleição em 2026, não dá para contar com uma ‘mensagem forte de compromisso fiscal’

Maílson da Nóbrega SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA

No dia 5 de novembro de 2008, logo após a crise financeira mundial disparada com a falência do banco americano Lehman Brothers, a rainha Elizabeth II, ao comparecer a uma cerimônia na London School of Economics, em Londres, fez uma pergunta: “Por que ninguém percebeu isso?”. Dias depois, economistas enviaram carta à soberana para explicar que houve uma falha coletiva de muitas pessoas brilhantes, no país e no exterior, que as impediu de entender os riscos do sistema.

Na verdade, mesmo quem entendeu os riscos (e houve muitos alertas) não conseguiria cravar o momento da erupção da crise. Segundo a lei de Dornbusch (homenagem ao saudoso economista alemão Rudiger Dornbusch), “a crise demora muito mais a chegar do que se imagina, mas depois ocorre mais rapidamente do que se pensa”. Daí por que os mercados não precificam uma grande crise. A enorme incerteza não permite calcular o desconto pelo risco de um determinado ativo financeiro.

O Brasil, como já afirmei neste espaço, caminha para uma profunda crise financeira decorrente de um colapso fiscal. É a consequência da marcha da insensatez fiscal iniciada na Constituição de 1988 e continuada em governos posteriores, especialmente os do PT. Decidiu-se resolver a desigualdade social e a pobreza por meio de gastos de Previdência e assistência social, sem indagar se haveria as condições para tanto. Segundo um de nossos melhores especialistas, Raul Velloso, esses gastos representam hoje 84,8% das despesas primárias da União.

Claro, a crise pode ser evitada por meio de expressivo corte de gastos, o que é impossível sem reformas estruturais. Fora disso, os cortes serão sempre tímidos, insuficientes e na maioria temporários. É o que ficou provado com o recente pacote fiscal, que decepcionou o mercado financeiro, o qual esperava, inocentemente, que ele seria robusto e levaria à estabilização e depois à queda da relação entre a dívida pública e o Produto Interno Bruto (PIB). Na verdade, o fracasso derivou, em parte, da excessiva rigidez orçamentária. De fato, quando computados os gastos com educação, saúde e o piso de investimentos, 96% das despesas primárias federais têm natureza obrigatória. Isso tende a piorar nos próximos anos.

Essa realidade é, todavia, pouco percebida. Demandam-se cortes expressivos de gastos, mas isso dependeria da aprovação das citadas reformas estruturais, o que é quase impossível no atual governo, principalmente agora que Lula da Silva entrou no modo de reeleição. Tudo indica que a Secretaria de Comunicação Social terá a inédita palavra final em medidas fiscais. Ações impopulares, mesmo que modestas, não passarão no filtro.

Há quem imagine que o governo possa fazer cortes do mesmo modo que o setor privado. “O Brasil precisa de mensagem forte de compromisso fiscal”, disse um banqueiro em Davos, o que tem chances zero de acontecer atualmente. Na verdade, restrições políticas, a reeleição, a ausência de determinação e a rigidez orçamentária explicam a relativa timidez do pacote fiscal. Claro, é bom que o mercado tenha percebido a existência desse grave problema e entenda que a dívida pública é o calcanhar de aquiles. Essa percepção explica em grande parte o forte estresse recente, quando o dólar chegou a valer R$ 6,20 e continuou acima de R$ 6 por vários dias.

Como se sabe, a causa básica do estresse foram a decepção com o pacote fiscal e as expectativas em torno das medidas do novo presidente americano, as quais, se implementadas, podem acarretar forte valorização do dólar nos mercados mundiais e desvalorizações de outras moedas, inclusive o real. Como isso não aconteceu na dimensão imaginada, criou-se a percepção de que Trump pode não implementar totalmente suas promessas de campanha relativas às tarifas. Os mercados desfizeram posições e corrigiram excessos, o que resultou em queda da moeda americana em relação ao real. No momento em que este texto era escrito, a cotação do dólar estava em R$ 5,83. O ministro da Fazenda afirmou que não compraria o dólar a R$ 5,70, sugerindo que esse seria o patamar do dólar com base nos fundamentos da economia brasileira.

Nada garante que o cálculo do ministro será confirmado ou que o dólar não volte a ser cotado acima de R$ 6,00. Em outras crises, de tempos em tempos, tudo parecia que a situação se normalizava, mas o estresse retornava diante da reemergência dos fatores que o justificaram. Assim, o problema pode renascer por um fato novo que relembre a insustentabilidade da trajetória da dívida pública. Por exemplo, a percepção de que o programa de Donald Trump é para valer. Basta ver a imposição de tarifas para punir a Colômbia por recusar-se a receber deportados e de 25% nas importações do México e do Canadá. Em resumo, em grande parte porque o governo está focalizado na reeleição em 2026, não dá para contar com uma “mensagem forte de compromisso fiscal”. Isso poderá acontecer no pós-crise, dependendo de quem estiver na Presidência da República. •

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2025-02-16T08:00:00.0000000Z

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