O Estado de S. Paulo

Cheque em branco para o ICMBio

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Otriste episódio da queda do teto da Igreja de São Francisco de Assis, na Bahia, que matou uma estudante e gerou uma firme reação do presidente Lula da Silva, evidencia um problema estrutural: a falta de orçamento para a manutenção do patrimônio brasileiro. Apenas no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o dinheiro parece estar sobrando. Se não, vejamos: no Brasil, dos 75 parques nacionais, apenas 18 não têm conflitos fundiários. Os outros 57, que correspondem a 90% da área total, sofrem disputas que se arrastam há décadas, impactando quilombolas, indígenas, caiçaras, agricultores e outras comunidades históricas. Confusão, aliás, promovida pela própria autarquia, que tem passado a fatura sem cerimônia para o Orçamento da União, com o objetivo de perpetuar uma posição ideológica de alto custo ambiental, econômico e social, sem construir soluções alternativas à que a própria Lei 9.985/2000, que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc), pode oferecer.

Na agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da ONU (2000), a proteção da vida terrestre (ODS-15) é indissociável da erradicação da pobreza (ODS-1) e da busca de paz, justiça e instituições eficazes (ODS-16). Esse apelo global deve ser traduzido em ações concretas por meio de parcerias públicas, público-privadas e com a sociedade civil (ODS-17), evitando a promoção de conflitos descabidos, que pesam indevidamente sobre o Orçamento público, oneram a Justiça e transformam potenciais parceiros em inimigos, como vem ocorrendo em dezenas de Unidades de Conservação (UCs) no Brasil. Não existe mais justificativa para a manutenção dessa política, que desperdiça recursos públicos e não garante uma proteção ambiental eficaz, como o estado de abandono de muitas Unidades de Conservação evidenciam. Não satisfeito com o recorde de incêndios que assolaram florestas, o ICMBio parece empenhado em queimar também o Orçamento federal.

Em parques nacionais como os da Serra da Canastra (MG), Campos Gerais (PR) ou Chapada dos Veadeiros (GO), milhares de famílias sofrem processos e ações truculentas do ICMBio, muitas vezes com agentes armados, via de regra orientados por um conceito defasado de preservação. Um modelo que custa caro e expulsa comunidades que, na prática, protegem o meio ambiente, encarado pela autarquia federal numa perspectiva de conflito permanente com a presença humana e o desenvolvimento social e econômico. O ICMBio ignora que o meio ambiente, como disse um poeta, está no meio da gente.

Na ação desastrosa que destruiu o terreiro de jarê e uma dezena de casas da Comunidade do Curupati, em Lençóis (Parque Nacional da Chapada Diamantina, BA), ou no Parque Nacional da Tijuca (RJ), onde até mesmo padres foram impedidos de celebrar missas e batizados no Santuário Cristo Redentor, o ICMBio especializou-se em perseguir comunidades, muitas vezes vulneráveis. Outro exemplo é o centenário Núcleo Colonial de Itatiaia, bairro do município fluminense que está na região do Parque Nacional de Itatiaia desde antes de sua criação e vem, desde 2008, enfrentando repetidos ataques e ameaças de desapropriação. São dezenas de famílias que, desde 1915, reflorestaram áreas outrora degradadas, contribuindo para a recuperação ambiental, mas que agora – apesar de proprietários de imóveis legalmente registrados – são tratadas como invasoras pelo ICMBio. O custo da desapropriação dessa pequena área urbana, equivalente a apenas 3% da área do Parque Nacional de Itatiaia, pode ultrapassar R$ 300 milhões, enquanto imóveis já desapropriados encontram-se abandonados desde 2010, gerando enormes riscos e outras despesas desnecessárias. Estima-se que o programa de desapropriações do ICMBio, chamado de “consolidação territorial”, que cresce a cada dia com a criação de novas Unidades de Conservação, custe bilhões para a União.

É espantoso que o ICMBio não tenha publicado até hoje sequer um estudo projetando integralmente o impacto financeiro de seu programa de desapropriações para o Orçamento federal. Voando às cegas, dedica-se menos a cumprir sua missão institucional do que a promover conflitos artificiais com comunidades que estão legítima e legalmente nesses territórios, o que tem incomodado outras áreas do governo, além de servidores da própria autarquia que discordam dessa política. Segue isolado e alheio à experiência e tratados internacionais que orientam a construção de pontes, e não muros, entre o Estado e a sociedade. As comunidades, por sua vez, foram buscar sinais de vida inteligente no Parlamento, no Ministério Público, no Judiciário e no próprio Executivo. E estão unindo forças para renovar esse diálogo e construir alternativas mais eficientes para o meio ambiente e menos dispendiosas para a União. O ICMBio é uma instituição relevante, precisa atuar de forma contemporânea e equilibrada. Não existe mais espaço para radicalismos sorrateiros e expedientes obscuros. O governo não pode dar um cheque em branco ao ICMBio, se não quiser correr o risco de passar um enorme cheque sem fundos à população. •

GUSTAVO RIBAS, DA COMUNIDADE DO PARQUE NACIONAL DOS CAMPOS GERAIS (PR); HUGO PENTEADO, DA ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS DE ITATIAIA (RJ, MG); NOELCIR VASCONCELOS PINHEIRO, DA COMUNIDADE PARATY-MIRIM DA APA CAIRUÇU (RJ); SUELI DE LIMA, DA COMUNIDADE DO PARQUE NACIONAL DA SERRA DA BOCAINA (SP, RJ); E UILAMI DEJAN A. FERREIRA, DA COMUNIDADE DO PARQUE NACIONAL DA CHAPADA DIAMANTINA (BA)

Estima-se que o programa de desapropriações do ICMBio, chamado de ‘consolidação territorial’, custe bilhões para a União

COLUNA DO ESTADÃO

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2025-02-12T08:00:00.0000000Z

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