O Estado de S. Paulo

Metástase

Nilton Bonder RABINO E ESCRITOR

Aviolência expõe o pior, mas o DNA do problema se revela no vômito, no sintoma. Uma biópsia mostrará que a solução de “dois Estados” está em processo maligno metastático: evolução que leva ao óbito. A malignidade está presente no slogan “do rio ao mar”, que projeta a expectativa radical de um mapa da grande Palestina ou da grande Israel, um sem a existência do outro.

O conflito já não faz mais sentido do ponto de vista de povos originários. Se os palestinos são os nativos históricos de Canaã, cujas terras foram roubadas, então os israelenses são os hebreus, a mais clássica vítima de limpeza étnica da História – não sendo eles colonizadores, mas os mais colonizados de toda a história das nações, como consignado no mais reconhecido documento do Ocidente e Meio-Oriente, que é o texto bíblico.

Temos de abandonar os argumentos de povos originários e retomar a Nakba, a “catástrofe de 1948”, o marco zero. Os palestinos não são grupos migratórios do Egito e de outros países árabes durante o Império Otomano e os judeus não são refugiados do leste europeu e do Holocausto, ambas as populações são as que estavam ali no marco zero. Nakba – a catástrofe – não foi a ocupação de Israel do então imaginado Estado palestino decidido pela ONU em 1948, que não ocorreu e permaneceu por duas décadas sem autodeterminação pelos palestinos, iludidos que foram pela espera da solução “do rio ao mar”. Nakba foi a incapacidade de ganhar a guerra “do rio ao mar” que propunha erradicar a população judaica palestina não aceitando um Estado do rio às linhas desenhadas pela comunidade internacional, incluindo a cidade velha de Jerusalém e seu lado oeste como capital em 1948.

Dessa malignidade se nutriram grupos em Israel e que, por processos próprios, passaram a nutrir a ambição de um possível “do rio ao mar”, mapa este sem a Palestina. O que alimenta a ideia “do rio ao mar” hoje para ambos os lados são a antiga ingerência da geopolítica de terceiros e a teologia de radicais que fazem apostar na solução por via da abstração de um mapa em duas dimensões, que não contempla a inexorável realidade humana de que existem dois grupos à espera de dois Estados que convivam em paz.

Hoje ambos, palestinos e israelenses, têm de lidar com a Nakba, com sua pretensão “do rio ao mar”. E a batalha contra a malignidade nãoé fácil. Elaé amais interna possível, elaé de ordem celular. Hamas, a ultradireita israelense, o Hezbollah, os colonos ultrarreligio-sos, a instabilidade social nos países árabes, a esquerda mundial radical e os messiânicos de todas as religiões são metástases “do rio ao mar”!

O que o Hamas realiza ao perpetrar seu massacre é reacendera pira“do rio a omar” e atrair Israel numa armadilha que fomente essa ideologia. A metástase encontra ecoe reverbera nas camadas mais subjetivas do ódio, tal como o antissemitismo e a islamofobia. E a civilização se afasta de seus ideais de desmontar toda e qualquer incitação autocrática de “rio ao mar” nas disputas humanas. “Do rio ao mar” é uma proposta sanguinária para matar jovens no ápice de sua vida, envolver crianças na barbárie das certezas e perpetuar o ciclo de violência. Se dois Estados tivessem sido materializados, se a Nakba não tivesse sido fermentada em saudosismo e ódio, mas em diplomacia e vizinhança, processos de construção teriam sido estabelecidos há décadas.

Nada foi mais destrutivo ao sonho palestino do que “do rio ao mar”, agora ressuscitado para uma nova geração de vítimas e flagelados. Muito sangue vai correr por causa deste slogan de intolerância em ambos os campos.

O Hamas avançou mais os interesses iranianos em articulação com o Hezbollah, o tal eixo de resistência, do que os dos palestinos. E talvez sejam os interesses geopolíticos os atores capazes de produzir algum outro cenário que não a catástrofe – o sonhar com a inexistência do outro. No entanto, do ponto de vista local, tais eixos não são de “resistência”, mas de destruição em conluio com malignidades no campo israelense, seja de políticos ou de radicais, todos parceiros no Nakba.

Não haverá paz sem confiança e sem cessar a demonização. A violência de 7 de outubro e a sua reação só distanciaram a paz. Além do sangue derramado, há o sangue futuro já comprometido! Um pacto de sangue e ódio, que é a própria Nakba de ambos.

É tarde, com certeza, mas o dever de todos os seres de bem é oncológico, e não escatológico. Aqueles que pelo mundo tentam expandir as fronteiras da Nakba humana, da intolerância, são coniventes com a violência. Contagiam uma nova geração que vê o dedo apontando para a estrela, o sonho Abraâmico, mas só veem o dedo. A estrela – a resistência à Nakba – aponta que a catástrofe não é o outro, mas a intolerância ao outro.

As metástases devem ser tratadas para produzir remissão e uma possível alta. O percurso é duro e escuro neste momento, porém não há outro: precisamos entender que “do rio ao mar” é o slogan do Anjo da Morte. Será dos sistemas imunológicos, da resistência interna de cada uma das duas sociedades à violência desse slogan, que advirá a cura. •

Muito sangue vai correr por causa do slogan de intolerância ‘do rio ao mar’ em ambos os campos. É da resistência à violência desse slogan que advirá a cura

O ESTADO DE S. PAULO

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2023-12-06T08:00:00.0000000Z

2023-12-06T08:00:00.0000000Z

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