Reconstruir a autoridade do Estado
Nicolau da Rocha Cavalcanti
OBrasil tem um sério problema fiscal, que custa caro ao seu presente e ao seu futuro. Basta ver a consequência imediata, a taxa de juros atual. Ao frear investimentos e premiar a inatividade, ela alimenta desigualdades e dificulta o desenvolvimento nacional. No entanto, antes do desequilíbrio entre despesas e receitas, o Estado brasileiro tem uma deficiência ainda mais grave e prejudicial: sua falta de autoridade.
Trata-se de carência comum ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário. Talvez se fale hoje, com mais frequência, da crise de autoridade do Supremo Tribunal Federal (STF): de como a Corte vem sendo percebida como órgão político, de como suas decisões – especialmente as monocráticas, mas não só elas – têm sido vistas como idiossincráticas, instáveis, casuísticas. Certamente, no panorama institucional brasileiro, o Supremo tem hoje especiais desafios de autoridade, mas ele não é caso isolado. Por diferentes trajetórias e razões, o governo federal e o Congresso também vivem crises similares, com consequências negativas sobre todo o País.
Há aqui um ponto importante: não basta ter o poder legal, concedido pela Constituição. Para ser funcional – para ser capaz de enfrentar eficazmente os problemas nacionais –, o Estado precisa dispor de autoridade. Por maior que seja seu tamanho, por mais forte que seja sua influência, por mais amedrontadoras que possam ser suas ameaças, o Estado necessita contar com o reconhecimento, por parte da sociedade civil, da legitimidade do exercício do seu poder. Sem autoridade, o exercício do poder estatal é não apenas desgastante e conflituoso, mas frágil, instável, menos funcional do que poderia e deveria ser. E, eis a crua realidade, as pessoas percebem tal fragilidade, instaurando um desastroso círculo vicioso.
Sempre necessário, esse requisito é essencial nos regimes democráticos, nos quais o poder emana do povo. O poder público não pode se dar ao luxo de não contar com a confiança da população, como se bastasse emitir decisões para que elas sejam eficazes. Isso vale tanto para o Executivo e o Legislativo, eleitos pelo voto, como para o Judiciário, cuja legitimidade democrática decorre da aplicação pública e fundamentada da lei. Para que as decisões estatais cumpram seus objetivos, é necessário que as instituições estatais sejam reconhecidas como detentoras do direito de exercer suas respectivas competências.
Uma observação. Ter autoridade não é o mesmo que contar com a aprovação popular ou não sofrer contestação por parcela da população. Não é índice de popularidade. Está noutro âmbito. Para ilustrar essa diferença, uso dois exemplos que, mesmo não sendo isentos de controvérsia, me parecem significativos. As duas pessoas que ocuparam a Presidência da República após os dois processos de impeachment foram os presidentes com menores médias de aprovação popular desde a Constituição de 1988. No entanto, apesar da impopularidade e de toda a oposição que sofreram, eles tiveram autoridade, foram funcionais. Com o distanciamento dado pelo tempo, esse fato é cada vez mais evidente.
O caminho, portanto, para resgatar a autoridade do poder público não é adotar medidas populistas, não é tornarse refém do clamor popular. Tal pretensão não é sequer possível, uma vez que, no caso do Poder Judiciário, sua missão é contramajoritária. Ser populista não é uma opção institucionalmente viável para a Justiça; muito especialmente, para o STF. E, mesmo para o Executivo e o Legislativo, a autoridade não é decorrência de decisões não incômodas à população – o que seria, antes, prova de falta de autoridade.
Na tarefa de resgate da autoridade, não há atalhos. É preciso respeitar a natureza, a função e os limites do poder público próprio de um regime republicano. Destaco dois pontos.
Não importa apenas o conteúdo das decisões, mas o modo como elas são tomadas. Os procedimentos importam. Os tempos importam. O tom importa. Parte sensível da legitimidade democrática é decorrência da obediência aos ritos e competências previamente estabelecidos, o que inclui, entre outras condições, a transparência e a fundamentação – as duas diretamente relacionadas a uma comunicação precisa e honesta.
Para que o Estado tenha autoridade, as autoridades têm de se portar como autoridades. Em função do cargo, devem ser exemplares, civicamente exemplares. O exercício do poder público tem de servir ao interesse público, não aos cônjuges, não aos filhos, não aos amigos, não a si mesmo. Tolerada como algo normal, a compreensão laxa do que configura conflito de interesse corrói a autoridade do poder público. E o oposto também é verdadeiro: quem se coloca distante do conflito de interesse – quem entende a importância de ser íntegro não apenas a partir de sua perspectiva, mas diante dos olhos do público – trilha o caminho da seriedade e da responsabilidade, o bom caminho da autoridade.
Eis, penso, um bom modo de olhar para 2025: tempo de reconstruir a confiança. Vale para todas as áreas e setores, sobretudo para o setor público. •
No panorama institucional brasileiro, o Supremo tem hoje especiais desafios de autoridade, mas ele não é caso isolado
O ESTADO DE S. PAULO
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2025-01-29T08:00:00.0000000Z
2025-01-29T08:00:00.0000000Z
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O Estado
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