Uma atriz contra suas próprias inseguranças
Favorita ao Oscar por ‘A Substância’, Demi Moore volta aos holofotes
MELENA RYZIK TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Demi Moore é a estrela de um dos filmes mais nojentos e audaciosos já indicados para o Oscar, a sátira de terror feminista A Substância. Na tela, Moore, de 62 anos, se dissolve e se transforma de maneiras muitas vezes terríveis – tudo isso nua e em close-up. E ela está mais autorrealizada do que nunca.
O papel exigiu “lutar contra os flashes da minha insegurança e do meu ego”, explicou Moore. “Me pediram para compartilhar coisas que não quero que as pessoas vejam.”
Na entrevista por vídeo, no início de fevereiro, ela estava em seu escritório, usando preto casual e óculos de armação grande. Filmar em meio a esse desconforto foi um “presente – uma coisa muito boa, uma bênção”, continuou ela. “Não há nada mais para esconder. Poder me soltar assim foi uma libertação para mim.” Na noite seguinte, ela g a nhou o pr ê mio Cri t i c s Choice de melhor atriz.
Sua carreira e seu ressurgimento cultural já eram esperados, disse Ryan Murphy, o produtor executivo e amigo que finalmente a convenceu a trabalhar com ele em Feud: Capote vs. The Swans ( Combate: Capote vs. Os Cisnes, em tradução livre), do ano passado. Ele disse que Moore tinha a beleza, a aura e a disciplina profissional de uma estrela da antiga Hollywood, mas com a flexibilidade de quem busca algo mais: “Ela é uma desbravadora. Veja o que fez pela indústria do cinema e pelas outras mulheres.”
Com A Substância, Moore também é a favorita ao Oscar de melhor atriz, por interpretar Elisabeth Sparkle, uma exestrela que se tornou instrutora de ginástica na TV e agora está sendo expulsa do paraíso de Hollywood pelo pecado de ter passado dos 50 anos. Sua solução desesperada é injetar em si mesma a substância misteriosa do título do filme e dar à luz – por meio de uma ferida
aberta na coluna – uma pessoa mais jovem, chamada Sue (Margaret Qualley). Elas devem trocar de lugar a cada sete dias, enquanto a outra vegeta. Mas, na batalha pela carne – e fama –, Elisabeth perde de um jeito bem grotesco.
Moore descreveu o projeto de A Substância como um cruzamento entre o clássico de Oscar Wilde O Retrato de Dorian Gray; a comédia de humor sinistro A Morte lhe Cai Bem (1992); e um vídeo de ginástica de Jane Fonda. O longa também está concorrendo a melhor filme, e a cineasta francesa Coralie Fargeat foi indicada para direção e roteiro.
METÁFORA. A mensagem não muito sutil do longa foi o principal motivo de debates. Mas a atuação extraordinária de Moore – que também se baseia em seu passado como símbolo sexual, cuja forma era tanto adorada quanto castigada – não é apenas uma metáfora. É uma atuação fisicamente fascinante e ela tem relativamente poucos diálogos; quase nunca está na tela contracenando com alguém; e se comunica principalmente por meio de planos fechados, muitas vezes olhando para seu reflexo no espelho – “que não é o lugar mais confortável para se estar”, disse. “Sempre procuramos o que tem de errado.”
Até a estreia no Festival de Cannes, em maio, ela não tinha certeza se o filme daria certo (acabou ganhando o prêmio de roteiro). E ela se tornou imediatamente inesquecível, de maneiras inesperadas: a voz sussurrada de Moore é uma de suas marcas registradas. “Fiquei surpresa com o poder que ela tinha em silêncio”, afirmou Murphy.
A produção, que se estendeu por cinco meses e meio na França, também foi uma das mais extenuantes dos 40 anos de carreira de Moore, segundo ela. Até o Limite da Honra (1997), o drama de ação de Ridley Scott, no qual ela interpretou uma recruta dos fuzileiros navais, “foi muito desafiador fisicamente”, contou Moore. “Mas A Substância foi emocional e fisicamente desgastante todos os dias”, lembrou.
E, no entanto, era o salto que ela buscava após se afastar e se reaproximar da atuação ao longo dos anos: primeiro, logo depois do auge nos anos 1990, para criar as três filhas que compartilha com Bruce Willis, seu ex-marido; e, depois, para
fazer um balanço de si mesma.
Uma coisa que nasceu desse período, além de um foco renovado na sobriedade, foi seu implacável Livro Aberto: A Minha História, de 2019. Na obra, entre muitos traumas, ela detalha anos de distúrbios alimentares e exageros nos exercícios físicos – trancava a geladeira com cadeado – e como ela emergiu com um senso de si menos fraturado.
O papel de A Substância não caiu no colo de Moore: Fargeat pensou em outras atrizes e foram necessárias muitas reuniões entre as duas para fechar o elenco. Em um desses encontros, Moore compartilhou uma cópia de seu livro (escrito com Ariel Levy, da New Yorker). Foi um gesto bem direto, disse Moore, para mostrar como a história de Fargeat se parecia com a sua, “não como ferida, mas como algo que tem cura”.
Moore não estava interessada em apontar culpados. “A marginalização das mulheres depois de certa idade, especialmente na indústria do entretenimento, é a informação menos nova do filme”, advertiu.
Ela também não queria destacar só o que chamou de “aquele estado doloroso que todas nós já vivemos, que é a comparação e o desespero”. O que a atraiu ao roteiro foi o modo como esses impulsos se voltam para dentro, com violência. “Não há nada que outra pessoa tenha feito a mim que seja pior do que o que fiz a mim mesma.”
Havia grandes abismos entre ela e a Elisabeth solitária e obcecada pela carreira, disse Moore. Mas ela afirmou: “Emocionalmente, não era uma distância muito grande. Eu realmente a entendia”.
Moore escapou de uma infância nômade e turbulenta, saindo de casa aos 16 anos. Aos 19, já era figurante de novela; depois, fez nome em filmes adolescentes como O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas e virou superestrela com uma série de sucessos dos anos 1990 – Ghost, Questão de Honra e Proposta Indecente. Ao receber um cheque de US$ 12,5 milhões por Striptease, em 1996, tornou-se a atriz mais bem paga do mundo, mas não atraiu elogios. (Ela ganhou o apelido zombeteiro de “Gimme Moore” – algo como “Me dá mais”.)
CAPA. Outro ponto fundamental foi a capa da Vanity Fair (1991), fotografada por Annie Leibovitz. Moore estava grávida de sete meses da segunda filha e Leibovitz tirou uma foto dela nua e cheia de joias, como se fosse um retrato íntimo. “A foto ajudou a mudar a paisagem cultural, quer eu quisesse ou não”, escreveu Moore. “Ajudar as mulheres a amarem a si mesmas e suas formas naturais é algo notável.”
A ideia de que ela mostrava a pele – em filmes ou em qualquer outro lugar – por pura confiança era uma percepção errônea do público. “Eu me sentia muito desconfortável e tentava de todas as maneiras superar isso.” Hoje em dia, Moore está tentando assimilar a adulação da crítica e de Hollywood por A Substância: “Estou tentando curtir o momento”.
Ela pareceu turbinar sua campanha para o Oscar com a vitória no Globo de Ouro como melhor atriz em filme de comédia ou musical, no mês passado. Em seu discurso um tanto surpreendente, mencionou um produtor que a dispensou como “atriz de blockbusters” e repetiu a sabedoria de uma mulher que conheceu décadas atrás, que lhe disse sem rodeios que ela nunca seria boa o suficiente – “mas você pode saber o seu verdadeiro valor, se deixar de lado a comparação com outras pessoas”. “Isso me tocou profundamente”, disse Moore.
O Globo de Ouro também trouxe um fato sobre Moore: ela é “uma ávida colecionadora de bonecas”, com uma residência só “para suas mais de duas mil bonecas vintage”. Em seu livro, ela diz que começou a colecionar brinquedos quando as filhas eram pequenas. Sua coleção vai além das bonecas: ela também tem miniaturas, colchas de retalhos e outras coisas. “Sou uma colecionadora de curiosidades.”
As imperfeições, ela aprendeu, merecem destaque. “Não que goste de ficar assustada, mas sei que é um lugar rico para se estar e sempre saio melhor do outro lado”, completou. •
“‘A Substância’ foi emocional e fisicamente desgastante. Até nas cenas mais simples”
“A marginalização das mulheres, depois de certa idade, em especial na indústria do entretenimento, é a informação menos nova do filme”
“(Para o filme), me pediram para compartilhar coisas que não quero que as pessoas vejam”
Demi Moore
Atriz
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