O Estado de S. Paulo

Você é melhor hoje do que há 20 anos?

Você mudou? Consegue mudar? É melhor hoje do que há 20 anos?

Tudo que vou narrar aqui ocorreu. Interessa-me a “moral da história” mais do que a identificação. Acompanhem.

Um rapaz trabalha em uma empresa e torna-se o braço direito do proprietário. O dono atende pelo nome de Francisco. O trabalhador é inteligente e dedicado. Como acontece por vezes, identifica-se com o lugar e passa a ter um foco similar ao do chefe. Trabalha mais de dez horas por dia e, em momentos-chave, atravessa a noite resolvendo questões. Sobe na hierarquia e cresce aos olhos do dono. Márcio (vamos chamá-lo assim) é o tipo ideal de colaborador.

O aumento expressivo da carga horária não é acompanhado de expansão salarial. O jovem, já casado, decide com a esposa abrir a própria e mpresa . Genui n a mente preocupado com o vazio de sua saída, comunica ao dono que terá, em seis meses, outro destino profissional. Considera o chefe um amigo e quer ajudar a treinar o substituto. Francisco recebe mal a notícia. O papel que deseja para o empregado é o de colaborador permanente. Márcio sai como “mais um” apenas.

Abrindo sua própria marca e ainda considerando o ex-chefe um amigo, pede conselhos e recebe frieza e silêncio. Não oferecendo mais seu sangue, torna-se irrelevante aos olhos do antigo contratante. Com dificuldades, o jovem segue a jornada. O ex-patrão nega apoio e ainda renega a importância de Márcio como ex-colaborador.

O tempo flui. Márcio cresce em parceria com Ana, sua companheira. Passam-se quinze anos. Do nada, recebe uma mensagem do primeiro chefe. O homem havia entrado em processo terapêutico com um psicólogo. Em meio a memórias e dores, o profissional recomendou a Francisco que pedisse perdão por coisas ruins que tivesse feito no passado. A consciência do ex-chefe é de que não apoiou o rapaz, explorou-o em excesso e, assim que Márcio decidiu crescer, abandonou-o como um qualquer. Francisco, mais velho, sente-se culpado. Na meia-idade, erros anteriores crescem e tornam-se mais amargos. O retrato de Dorian Gray do sótão fica mais feio.

Márcio recebe mal a mensagem. Primeiro, porque ainda

Aprendemos. E, com o saber adquirido, passamos a cometer equívocos em novos lugares

tem mágoas. Depois, porque entende o óbvio: o chefe não o via naquela época e continua não o vendo agora. O egoísmo de Francisco é o mesmo, querendo apenas a reconciliação consigo. Como o jovem entende, é uma Des/Culpa, uma tentativa de expiar a própria culpa, não uma ida ao encontro de Márcio. Mais: sendo Márcio um sucesso atualmente, Francisco deseja ser considerado como parte ou alavanca do êxito atual. Não é uma penitência sobre o passado, é o mesmo coração duro que só enxerga a si. Francisco busca seu próprio benefício sempre: antes, como empreendedor; agora, como psicanalisado.

A resposta de Márcio é ponderada. Não oferece o perdão balsâmico. Apenas pede que o outro nunca mais pise em alguém ou abandone um amigo. Relembra como foi difícil e não concede o teatro do abraço fraterno, que acalmaria o outro.

A história é absolutamente real e ensina-nos muito. Francisco errou como eu e você, querida leitora e estimado leitor. Viver implica errar. Aprendemos, vezes muitas, e passa

mos a cometer equívocos em novos lugares com a sabedoria adquirida. O que vimos aqui é um processo complicado: é difícil saber se Francisco, de fato, arrependeu-se ou se, apenas agora, vendo o sucesso do ex-colaborador, quer algum tipo de mérito na trajetória do outro. Assemelha-se a um pai que, tendo expulsado o filho do lar, vê o rebento prosperar enormemente e reflete sobre seu ato pretérito. No fundo, o genitor gostaria do fracasso do filho, pois isso comprovaria a sabedoria da exclusão. Quando o mundo acolhe quem eu considerei indigno, demonstra meu equívoco. Ver afundar quem condenamos (ou não apoiamos) é um alívio para a maioria.

A primeira lição é: erros não remediados tendem a virar feridas complexas. Responder com frieza a quem ofereceu afeto e dedicação tem um custo alto que, macerado, ulcera. Segundo aprendizado: a desculpa não pode ser apenas para meu coração atormentado ou minha consciência inquieta. Deveria ser algo que, enfim, olhasse para o outro. Ouvi os áudios de Francisco.

Sou amigo de Márcio. Nada havia na voz que indicasse uma transformação daquele homem. Era um egoísta envelhecendo e com novos receios. Continuava um canalha. Lembrei-me de uma fala popular: “As cobras trocam de pele porque ficam maiores, não porque deixam de ser cobras”. O medo do inferno nunca fez alguém santo; tão somente o amor faz essa transformação.

Tudo tem seu tempo e sua hora? O momento de consertar é próximo da dor causada. A hora de refazer algo envolve entrega genuína e mudança efetiva.

A dúvida é válida: alguém deixa de ser o que era? De verdade? Não gosto de receitas fixas ou de modelos universais. Faço a mim, com esperança, a pergunta que transmito às leitoras e leitores: você mudou? Você consegue mudar? Você é melhor hoje do que há 20 anos? Boa semana a todos que se incomodam com o passado e ainda conseguem ter coração humano. •

LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

PRIMEIRA PÁGINA

pt-br

2025-02-09T08:00:00.0000000Z

2025-02-09T08:00:00.0000000Z

https://digital.estadao.com.br/article/281539411663546

O Estado