O Estado de S. Paulo

Planos de saúde fazem rescisão unilateral e queixas sobem 31%

Judiciário e órgãos de defesa do consumidor acompanham casos

FABIANA CAMBRICOLI

Milhares de clientes de planos de saúde vêm recebendo aviso de cancelamento unilateral de contratos. Em quase todos os casos, a alegação é de que a carteira é deficitária e não pode ser mantida pela operadora. Há cancelamento de planos de pacientes em tratamento, situação considerada ilegal pelo Judiciário e questionada por órgãos de defesa do consumidor. Em um ano, houve pelo menos 80 mil cancelamentos em três operadoras. A maioria é de pacientes com autismo, mas há casos de paralisia cerebral, transplantados, hemofílicos e mulheres com mais de 30 semanas de gestação. O cancelamento unilateral é permitido em contratos coletivos (empresariais ou por adesão). A ANS recebeu, em 2023, 15.279 reclamações sobre rescisão contratual unilateral, alta de 37% em relação a 2022. Neste ano, foram 5.888 reclamações até abril, 31% a mais do que no mesmo período do ano passado.

Fazia um mês que o cirurgiãodentista Carlos Goto, de 65 anos, havia descoberto um câncer de pâncreas em estágio avançado quando recebeu, em março, um e-mail com o aviso inesperado de que seu plano de saúde seria cancelado pela operadora. Por uma situação semelhante passa Aparecida Barbosa dos Santos com seu filho de 6 anos, que nasceu com uma má-formação no sistema urinário, é transplantado e está em acompanhamento médico. A família foi avisada de que o contrato do menino seria rescindido no final deste mês por “estar dando prejuízo”. A aposentada Norma (nome fictício), de 92 anos e cardiopata, também foi surpreendida com a notícia de cancelamento, mesmo pagando mensalidade de R$ 24 mil ao plano de saúde.

Os três pacientes integram um grupo de dezenas de milhares de clientes de planos de saúde que vêm recebendo, nos últimos meses, aviso de cancelamento unilateral de seus contratos. Em quase todos oscas os, aj usti fica tivaé ade que a carteira de clientes da operadora é deficitária e não pode ser mantida pela empresa.

O cancelamento unilateral sóéproib id opar aplano individual ou familiar, ma sé permitido em contratos coletivos( empresariais ou por adesão ). Os coletivos por adesão, geralmente vinculados a associações ou sindicatos e intermediados por administradoras de benefício, são a modalidade mais afetada pela onda de cancelamentos e reúnem cerca de 6,1 milhões de brasileiros.

O imbróglio está no cancelamento de planos de pacientes em tratamento, situação que vem sendo considerada ilegal pelo Judiciário e questionada por órgãos de defesa do consumidor e parlamentares.

Segundo advogados e denúncias protocoladas em diferentes órgãos, Unimed Nacional e Amil concentram a maioria dos cancelamentos unilaterais recentes. Ambas estão na mira do Ministério Público de São Paulo. A Bradesco Saúde também é alvo de procedimento aberto pelo MP-SP no ano passado sobre rescisões.

Considerando dados das empresas e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o número de clientes com contratos cancelados nessas três operadoras pode ultrapassar os 80 mil só entre planos coletivos por adesão. A estimativa feita pelo Estadão se baseia em duas fontes: a Amil informou no dia 16 que o total de rescisões representa 1% de sua carteira de 3 milhões de clientes, o que equivale a cerca de 30 mil. A Unimed e a Bradesco não informaram o número de rescisões, mas, segundo dados da ANS tabulados pela reportagem, em 2023 houve redução de 53.782 vidas no total de clientes das duas operadoras em planos coletivos por adesão – 19.367 a menos na Unimed e 34.415 na Bradesco, comparando os números de março com os do mesmo mês de 2023. Não é possível saber, só por dados da ANS, quantos desses beneficiários saíram do plano por vontade própria ou por cancelamento da operadora, mas a queda do último ano é muito superior à variação média observada de 2019 a 2023 nos planos coletivos por adesão dessas empresas.

Entre 2019 e 2023, a Unimed teve redução média de 1,8 mil beneficiários por ano, enquanto a Bradesco Saúde teve aumento médio de 862 beneficiários por ano. A redução observada no último ano nos planos coletivos por adesão das duas operadoras representa, respectivamente, 0,9% e 1,1% da carteira total de clientes da Unimed e da Bradesco Saúde.

QUEIXAS. Iniciada no ano passado, a onda de cancelamentos se intensificou nas últimas semanas e gerou alta de queixas na ANS e de ações judiciais questionando a medida. A agência diz ter recebido, em 2023, 15.279 reclamações sobre rescisão contratual unilateral, alta de 37% em relação a 2022. Neste ano, o número segue crescendo: só até abril (último dado disponível), já foram 5.888 reclamações, 31% a mais do que no mesmo período do ano passado.

As rescisões em massa levaram ainda à abertura de investigações no MP-SP, que apura centenas de denúncias de cancelamentos de planos de crianças com autismo recebidas e encaminhadas pela deputada estadual Andréa Werner (PSB), presidente da Comissão da Pessoa com Deficiência na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). “Os planos estão escolhendo quem querem atender e enviando os pacientes mais caros para o SUS, sobrecarregando o sistema. É uma seleção de risco que, além de ser ilegal, também é perversa”, disse Andréa.

JUDICIÁRIO. O Judiciário tem visto alta de demandas de pacientes em tratamento que tiveram seus planos rescindidos. “Sempre existiu cancelamento unilateral, mas não em massa como neste ano. Infelizmente, está atingindo grupos vulneráveis, não estão olhando se o paciente está em hemodiálise, em quimioterapia”, diz Gisele Tapai, advogada especialista em direito à saúde e sócia do Tapai Advogados, onde os processos sobre o tema já são 85% do total das demandas do ano no escritório – em 2023, só correspondiam a 12% do total. Segundo os advogados, nas ações movidas pelos clientes, é evocado um entendimento do Judiciário de que pacientes em tratamento não podem ter planos cancelados.

Esse entendimento vem de uma decisão de 2022 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na análise de um tema repetitivo, situação em que a Corte se manifesta sobre um recurso recorrente em tribunais do País e cria precedente que costuma ser seguido a partir de então.

Nesse precedente, o STJ definiu que a operadora deve “assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais prescritos a usuário internado ou em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, até a efetiva alta, desde que o titular arque integralmente com a contraprestação devida”.

As operadoras, porém, argumentam que isso valeria apenas para casos mais agudos, como internações ou tratamentos de urgência. Já os advogados dizem que os juízes estão dando razão aos pacientes mesmo em casos de tratamento prolongado, como o de câncer; ou de doentes crônicos ou com alguma necessidade especial, como crianças autistas. Foi assim, por meio de liminares judiciais, que os três pacientes citados no início da reportagem garantiram a manutenção do convênio.

“Quando recebi o aviso de cancelamento do nosso plano da Unimed, até tentei com dois outros planos a migração, mas não nos aceitaram”, conta a advogada Rosângela Goto, de 65 anos, mulher de Carlos Goto, que trata tumor no pâncreas. Além dele, a própria Rosângela faz um tratamento de manutenção para um câncer de mama. O casal paga R$ 9.980 de mensalidade.

Com a onda de cancelamentos, a Promotoria dos Direitos Humanos – Pessoa com Deficiência do MP-SP abriu procedimentos contra pelo menos três operadoras. Um inquérito foi aberto contra a Unimed Nacional no ano passado e há apurações preliminares contra a Amil e a Bradesco Saúde. O inquérito contra a Unimed acabou levando à assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que define multa de R$ 20 mil à operadora caso não haja a devida comunicação do cancelamento aos clientes, com pelo menos 60 dias de antecedência.

“Sempre existiu cancelamento unilateral, mas não em massa como neste ano. Está atingindo grupos vulneráveis”

Gisele Tapai Advogada

ALESP. Na última terça, a Alesp recebeu projeto de resolução assinado por 53 parlamentares com o pedido de instauração de CPI para investigar eventuais irregularidades no cancelamento unilateral de planos de saúde de pessoas em tratamento, especialmente idosos e pessoas com deficiência.

Além disso, a Comissão de Direitos das Pessoas com Deficiência da Alesp aprovou o convite para que o presidente da Amil, José Seripieri Filho, compareça no próximo dia 28 à comissão para prestar esclarecimentos sobre o cancelamento unilateral de contratos de pessoas com deficiência que estão em tratamento. No ano passado, o mesmo ocorreu com representantes da Unimed.

No dia 15 de abril, a Câmara dos Deputados realizou audiência pública com representantes da Unimed para discutir o cancelamento unilateral.

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