O Estado de S. Paulo

1ª mulher negra e latina no topo do mundo

Brasileira trabalhou com reciclagem e participou de programa de TV para arrecadar dinheiro para a expedição

Luis Filipe Santos

A montanhista brasileira Aretha Duarte chegou ao cume do Monte Everest em 23 de maio, 68 anos após a primeira escalada.

Entre a primeira vez que o topo do Monte Everest foi alcançado, em 1953, e a primeira vez que uma mulher negra latino-americana chegou ao ponto mais alto da Terra passaram-se 68 anos. E o feito é de uma brasileira, Aretha Duarte. Ela concluiu a subida no dia 23 de maio. Mas sua jornada começou bem antes de ela viajar para o Nepal: a montanhista arrecadou dinheiro para a expedição através de reciclagem, atividade que já praticara na infância e adolescência, além de participar em um programa de TV que a ajudou.

Ao longo da campanha do Everest, iniciada em março de 2020, Aretha juntou mais de 130 toneladas de resíduos destinados à reciclagem, reuniu cerca de 600 brinquedos usados e higienizados que foram distribuídos no Natal a crianças da periferia de Campinas e mais de 1.200 livros para uma biblioteca comunitária. Depois, também realizou uma campanha de arrecadação na internet, participou do quadro The Wall, no programa Caldeirão do Huck, da TV Globo, e, na reta final, conseguiu o patrocínio de sete empresas.

“A principal diferença foi o volume. Na infância, eu queria comprar um par de patins; na adolescência, uma máquina de lavar. Desta vez, o objetivo era maior e muita gente se engajou. Acredito que esse é um dos caminhos para realizar o que acredito”, relata Aretha ao Estadão sobre o trabalho com reciclagem. Ao fim, ela arrecadou os R$ 400 mil que precisava e viajou a Katmandu, capital do Nepal, em 2 de abril de 2021.

Aretha precisou ficar alguns dias de quarentena obrigatória, cumprindo norma do governo nepalês, antes de iniciar a subida gradual do campo base até os campos dois, três, quatro e, finalmente, o cume do Everest. A montanhista venceu a última etapa dos 8.848 metros na manhã do dia 23, um domingo, às 10h24, pelo horário nepalês (1h39 da madrugada de domingo no Brasil). O país asiático está 8h45 à frente de Brasília.

Apesar do valor simbólico, Aretha conta que a escalada do Everest é mais difícil emocionalmente do que pela parte técnica. “É uma montanha extremamente especial, no sentido de ter facilitadores, como a fixação de cordas ao longo de toda a montanha. Então, tecnicamente posso afirmar que não é o mais alto nível. No entanto, questões emocionais, físicas, relacionadas a estrutura, logística, lidar com outras pessoas, como os sherpas (guias locais) ou os colegas de trabalho”, explica. “Há uma série de adversidades, especialmente para a mulher, com questões fisiológicas e bioquímicas envolvidas. Há momentos em que as mulheres são muito mais sensíveis e emotivas do que os homens.”

Contudo, a brasileira não deixa de valorizar a conquista. “Minha sensação de chegar ao cume do Everest foi de ‘caraca, subi de nível’. Quão difícil é escalar essa montanha. É difícil precisar tudo o que senti, pois a emoção é forte. Mas pensei sobre a minha realização e o quanto ela pode servir de inspiração para as pessoas. As mulheres negras, especificamente, têm de saber disso. Elas não precisam ficar focadas só no sonho grande, mas no próximo passo, e, depois, no passo seguinte, e no outro, com constância e regularidade, até chegar ao objetivo grande. Todas as mulheres podem”, afirma Aretha.

Curiosamente, até pouco tempo atrás, a montanhista brasileira não pensava em subir o pico mais alto do mundo. “Até dezembro de 2019, eu realmente não tinha interesse de escalar o Monte Everest. Achava que as pessoas queriam ir para lá para se autopromover. Mas, em dezembro do ano passado, vendo fotos de expedições no Nepal, vi o Vale do Silêncio, que está a 6.400 metros de altitude, achei impressionante e me arrepiei. Quis estar lá. Assim surgiu a vontade de, um dia, escalar o Everest”, comentou Aretha.

Antes do Everest, ela já havia escalado outras montanhas famosas: Monte Kilimanjaro, maior da África, além de Elbrus (Rússia), Monte Roraima (Venezuela), Pequeno Alpamayo (Bolívia), Vulcões (Equador) e o Monte Aconcágua, na Argentina, o mais alto fora o Himalaia, que ela escalou cinco vezes.

Projeto. Aretha conta que seu maior projeto no momento é uma escola de escalada para jovens da periferia de Campinas. “Justamente para eles conhecerem esse esporte, que é algo ainda distante, não é um esporte tão popular ainda. Daí, podem passar a entender o que é esse esporte, as vertentes, as possibilidades de realização e quem sabe se tornarem talentos que nos representem nos Jogos Olímpicos”, disse ao Estadão.

A escalada fará sua estreia nos Jogos em Tóquio e já está confirmada para a edição de 2024, em Paris.

“O mais importante é ajudar a dar uma vida digna e justa, para que as pessoas entendam a capacidade de se desenvolver. E um centro de escalada pode ajudar nesse processo, não só em Campinas. Espero que seja um projeto piloto que se espalhe pelo Brasil. Nós precisamos encontrar líderes (comunitários) que aceitem a proposta e a implementação e, principalmente, que possam gerir esse projeto de escalada, com foco esportivo, intelectual e cognitivo”, diz Aretha.

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