‘Política de Trump talvez tenha efeito colateral positivo’
Tarifas podem forçar China a investir mais em bem-estar social e liberar recursos para consumo Doutor em Economia pela USP, Samuel Pessôa é pesquisador associado do Ibre da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre)
SAMUEL PESSÔA Economista e pesquisador
Para o economista, tarifas podem forçar China a investir em bem-estar social.
Oeconomista Samuel Pessôa avalia que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se isolou com a sua política tarifária. Ele classifica a decisão trumpista de aumentar tarifas de importação como “antiquada”. Pessôa enxerga, porém, a possibilidade de um efeito colateral positivo nessa medida “meio desastrada”: que isso acabe forçando a China a investir mais em medidas de bemestar social, para estimular o consumo doméstico de modo que possa absorver uma produção industrial que tenha mais dificuldade de entrar em outros países. A seguir, trechos da entrevista concedida ao Estadão:
Como o sr. avalia a decisão do governo dos EUA de aumentar a taxação sobre produtos da China para 145% e o anúncio de uma pausa de 90 dias nas tarifas recíprocas, reduzindo-as para 10%?
A impressão que dá é que Trump percebeu que estava ficando isolado ao colocar tarifa contra todo mundo. O problema maior dele é com a China. A China tem o maior superávit ( com os EUA) e uma taxa de poupança excessivamente alta. As questões dele são mais com a China. Precisamos esperar. Essas coisas acontecem num dia; em outro, acontece alguma coisa diferente. É um pouco difícil ter uma avaliação mais segura, mas esse movimento se aproxima da estratégia do primeiro mandato, de uma disputa direta com a China.
É exagerado dizer que é o fim da ‘era da globalização’?
Não é exagerado. Pode ser que sim, mas eu acho que ainda é cedo para cravarmos isso. O mundo já se globalizou e se desglobalizou em outras oportunidades. Esses ciclos ocorrem. A outra vez que esse ciclo ocorreu coincidiu com o momento em que o país líder da globalização estava sendo contestado por outras lideranças, outras potências. Houve a primeira globalização que vai da década de 1840 até a Primeira Guerra Mundial, que é a globalização liderada pela Inglaterra. Chamamos de ‘Pax Britannica’. O Reino Unido era o grande líder, a fábrica do mundo. Exercia o poder de polícia, e a moeda internacional era a libra. Esse grande período de globalização terminou com a Primeira Guerra Mundial. Foi um período em que a Alemanha emergia como uma potência importante, os EUA estavam crescendo muito. A guerra gerou um período conturbado de 30 anos, quase 40 anos, com duas guerras mundiais e, no meio delas, uma Grande Depressão. Nesse período todo, o comércio mundial caiu muito. Só voltamos a ter um nível de comércio mundial equivalente ao de 1913, de 1914, na virada da década de 1970 para a década de 1980. Demorou um tempo para o comércio internacional voltar aos picos pré-Primeira Guerra Mundial. Ou seja, esses fenômenos já ocorreram no passado e podem ocorrer agora, mas ainda é cedo para a gente cravar.
Se o cenário se confirmar e o cenário global piorar, quais podem ser os impactos para o Brasil?
O Brasil vai sofrer como todo mundo, principalmente havendo uma desorganização da produção. Mas o Brasil deve ser um dos países que menos vão sofrer. Se pegarmos a história do século 20, é um século com tragédias. Foram duas guerras mundiais e uma grande depressão. Esses episódios foram muito difíceis para nós, mas sofremos menos do que a média do mundo. Eu acho que a situação vai se repetir agora. Estamos mais ou menos longe de tudo, escolhemos ficar apartados das cadeias globais de valor. Tirando a Embraer, não temos mais grandes empresas brasileiras que estão conectadas com as cadeias globais de valor. Por conta dessa decisão de nos mantermos fechados e apartados das cadeias globais de valor, nós pagamos um preço permanentemente muito alto na forma de menor produtividade e redução do bem-estar da sociedade. Mas, dado isso, agora, com todo esse choque, estamos relativamente protegidos. A nossa vida vai piorar, porque a vida do mundo todo vai piorar, mas nós seremos menos afetados do que a média.
O sr. acredita que essa política tarifária não vai ter o resultado que o presidente Trump espera?
Eu acho que não vai ter. De fato, é tudo muito antiquado. A tarifa é uma coisa do século 19. O uso de tarifa como instrumento de arrecadação de receita pública é uma coisa bem antiquada. E, adicionalmente, o mais importante de tudo isso é que essa roda não gira para trás. Estamos falando de progresso tecnológico, não é de comércio. Tudo bem, perdeu-se muito emprego para a China. Mas esses empregos na China viraram hoje empregos de robô. Se der tudo certo, os robôs vão voltar para os EUA, mas que vantagem Maria leva?
Há um debate de que a China pode inundar o mercado com seus produtos. Se isso ocorrer, não pode acabar criando mais uma guerra comercial, porque outros países vão querer adotar tarifas?
Pode. Nessa pergunta, está o único ponto que, talvez, traga algum fundamento para a política adotada pelo Trump. É uma política meio desastrada, mas talvez tenha um efeito colateral positivo. Qual é? A absorção chinesa é muito baixa. A China é um país rico e já ultrapassou o Brasil em renda per capita, mas o consumo do cidadão chinês é muito baixo. O consumo per capita em dólares constantes de um cidadão chinês médio é menor do que o de um cidadão brasileiro.
Por que é menor?
O chinês poupa loucamente, porque a China não tem o ‘welfare state’ ( estado de bem-estar social). Isso gera, portanto, esse estado muito avarento, uma percepção de insegurança muito grande do cidadão chinês e produz uma poupança excessiva. Os EUA estão pondo uma barreira imensa. Então, eles não estão querendo absorver o excesso de produção industrial que a China tem. Se eles ( EUA) não absorverem esse excedente produtivo de manufatura que a China tem, ela vai tentar colocar no resto do mundo. E aí pode gerar problemas. O resto do mundo pode colocar barreiras comerciais a essa manufatura chinesa. E aí, talvez, eles ( chineses) sejam obrigados a tomar medidas para que a taxa de consumo aumente, para que a taxa de poupança caia. •
“A tarifa é uma coisa do século 19. O uso de tarifa como instrumento de arrecadação de receita pública é uma coisa bem antiquada”
“O Brasil vai sofrer como todo mundo, principalmente havendo uma desorganização da produção. Mas o Brasil deve ser um dos países que menos vão sofrer”
Novo paradigma Economista diz que ‘ainda é cedo’ para se falar em fim da atual era de globalização
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2025-04-11T07:00:00.0000000Z
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