O Estado de S. Paulo

BANHA DE PORCO EM ALTA

Costume antigo retorna em alta à cozinha

Renata Mesquita

De sabor neutro, ela afastou imagem de que faz mal à saúde e é adotada pelos chefs.

Sua bisavó usava, provavelmente sua avó também. Os chefs usam. A banha de porco já reinou absoluta. Era a gordura mais utilizada na cozinha, da caipira ao mundo afora. Uma lata com banha era ingrediente onipresente, mantida ao lado do fogão sempre pronta para refogar, fritar, finalizar uma receita, ou até mesmo conservar os alimentos – quando ainda não havia refrigeração.

Ela caiu em desuso, foi pouco a pouco substituída por gorduras processadas de vegetais, como óleos e margarina, foi demonizada pela indústria e ganhou reputação de ser prejudicial à saúde, associada a problemas cardiovasculares – o que já foi comprovado não ser verdade. Se usada com moderação, a banha de porco é benéfica para a saúde, rica em nutrientes e livre de gordura trans, presente na maioria das gorduras vegetais.

Por sorte, chefs e produtores artesanais vêm trabalhando para trazer a banha de porco de volta às cozinhas e prateleiras. De sabor neutro e delicado – com usos diversos, do feijão à massa da torta doce –, vai na contramão da imagem que temos formada sobre ela.

Para provar isso, o chef argentino Pablo Inca desafia os comensais e coloca a falsa heresia para jogo logo no couvert do seu recém-inaugurado Cora. Temperada com ervas, raspas de limão, pasta de alho e aliche, a sua “manteiga” de banha de porco é sedosa, delicada e repleta de sabor; chega acompanhada de fatias de pão de fermentação natural – para besuntar como manteiga.

A banha temperadinha, em textura de pomada, também toma o lugar da manteiga que escolta o pão do Lobozó, restaurante do chef Marcelo Corrêa Bastos, que visa resgatar os costumes da culinária caipira. Dá coro à troca o chef Jefferson Rueda: “Que ideia colocar manteiga para acompanhar a nossa cachaça e pimenta, a banha tem muito mais potência”. O “ouro” da sua cozinha, como Rueda se refere à iguaria, que ele usa na Casa do Porco “com moderação”, lembra, é inclusive vendido na mercearia do restaurante.

Coincidência ou não, é também assim que o chef, pesquisador e produtor Rafael Cardoso, mais conhecido como Rafa Bocaina, da charcutaria Curiango, que fornece a banha para o Cora, mais gosta de consumir a gordura do porco caipira que cria na sua fazenda no Vale da Paraíba: “Pega uma torrada de um bom pão, passa a banha e joga alguns cristaizinhos de sal, é a melhor coisa”, conta com água na boca.

Na cozinha, ela é usada para resgatar sabores e preparações tradicionais: a massa podre que desmancha na boca, o feijão com gostinho da casa da avó ou o bolinho de chuva bem sequinho. Mas suas vantagens ultrapassam o romantismo nostálgico, ela é capaz de realçar e potencializar o sabor dos alimentos. “Uso em tudo, desde estourar a pipoca a fritar o ovo. Aqui em casa e no restaurante, onde dá para substituir, uso a banha de porco”, entrega o chef André Mifano, grande defensor da carne suína desde seus tempos de Vito. Às voltas com a abertura de sua nova casa, o Donna, de cardápio ítalo-paulistano, Mifano ensina: “É como usar caldo no lugar da água. Se dá para usar caldo que vai entregar sabor à receita, por que usar água? É a mesma coisa com a banha e um óleo vegetal qualquer”. O chef, que recentemente descobriu ser intolerante a derivados de leite, ainda pescou mais um benefício na troca: “A banha é zero lactose”.

O arte do croc. Talvez o segredo mais bem guardado das nossas avós para alcançar frituras mais crocantes tenha estado sempre ali, ao lado do fogão. Isso porque a banha é a verdadeira responsável pela textura crocante e mais sequinha de massas e frituras. “Empanada feita com banha fica mais sequinha e é o que garante o folheado da massa”, entrega Pablo, que serve o salgado douradinho e crocante com recheio de cordeiro no Cora e por alguns anos tocou a produção do La Guapa, ao lado da conterrânea Paola Carosella.

Ainda não está convencido? A banha também é mais resistente a altas temperaturas que outras gorduras, e não sofre alterações na hora de fritar – e, consequentemente, com menos riscos de oxidar (e assim fazer mal à saúde).

E engana-se quem pensa que só nas casas típicas ela aparece. A banha é carta na manga de muitos chefs para a construção de sabores em diferentes pratos, muitas vezes até sem porco. Tassia Magalhães, chef do Nelita, confita os aspargos na banha de porco antes de servi-los com molho beurre blanc, bottarga e fatia de lardo italiano por cima. Ela conta que o ingrediente faz toda a diferença no resultado final. “A banha traz intensidade, sem mascarar o sabor do ingrediente principal.” Vale notar aqui o tal lardo utilizado por Tassia na finalização do prato, e que surge em diversos cardápios da cidade como sinônimo de comida requintada, nada mais é que, em tradução livre, gordura de porco; já no mundo gastronômico, é a finíssima “gordura” da costa do animal tratada com especiarias e apurada por meses.

Na lata. Nos últimos tempos, a banha ganhou, ou melhor, voltou às prateleiras dos mercados em versões repaginadas e artesanais, como no caso das produzidas por Rafa, da Curiango (@curiango.art) e d’a Casa do Porco, do chef Jefferson Rueda, ambos criadores de porcos que fabricam e refinam as próprias banhas de forma artesanal, com todo cuidado e sem adição de conservantes, utilizando apenas as melhores partes dos porcos.

Não é mero papo de gourmet. A grande diferença entre as banhas convencionais de grandes frigoríficos e as artesanais começa na alimentação do porco, seguindo a máxima do historiador americano Michael Pollan: “Você é aquilo que você come”. A qualidade da banha está estreitamente ligada à qualidade da alimentação do porco. Nesse contexto, Rafa retoma a função histórica do porco como animal reciclador, o bicho que come as sobras de comida e descartes em geral, perdida na criação intensiva. Em parceria com empresas beneficiadoras de grãos da sua região, ele recebe os descartados, com pequenos defeitos, e prepara a ração com capim, soro de leite e diferentes grãos, predominando o gergelim. Nesse último, um segredo que faz toda a diferença: são oleaginosas que ajudam a converter a gordura saturada do porco em insaturada, mesmo processo que a bellota (espécie de castanha gordurosa) confere aos porcos pata negra ibéricos, que estão entre os jámons mais célebres do mundo. Dá para entender que o porco e a banha são coisa séria para eles.

Além delas, outra banha que tem atestado de garantia de qualidade, desde a atenção à vida dos porquinhos felizes até a venda, é a da Jais Handmade (@jaishandmade), marca de charcutaria artesanal comandada pelo casal Egon e Karine Jais. “A nossa banha é uma banha moderna, desenvolvida por nós com ajuda do chef italiano Sauro Scarabotta, usando um método que resulta em um produto final mais saudável e de aroma mais delicado do que o das banhas de antigamente.”

Primeira Página

pt-br

2021-09-28T07:00:00.0000000Z

2021-09-28T07:00:00.0000000Z

https://digital.estadao.com.br/article/281487869503256

O Estado