O Estado de S. Paulo

Nossas histórias com Chico Buarque

Musical repassa obra do artista a partir da memória dos intérpretes

DIRCEU ALVES JR

Em 2016, o diretor Rafael Gomes ensaiava Gota d’Água ( A Seco), versão do musical de Paulo Pontes e Chico Buarque, escrito em 1975 sob a inspiração da tragédia Medeia, de Eurípides. Uma questão não saía de sua cabeça. Se, no clássico grego, a personagem-título, depois de matar os filhos, sai livre pelo mundo, por que na adaptação, que rebatizou a protagonista, Joana comete suicídio? Só mesmo Chico poderia responder.

Contatado pela produção, o compositor propôs um encontro em seu apartamento, no Rio. Tomados pela ansiedade, Gomes, a atriz Laila Garin e a produtora Andréa Alves saíram do elevador e encontraram o anfitrião à espera deles na porta, longe de qualquer idealização que rondasse a fantasia dos convidados.

Gomes, Andréa e Laila seguiram encantados com o papo até achar a hora de perguntar por que ele e Pontes mataram Joana. “Chico disse que não se lembrava, que Pontes chegou com o texto em prosa pronto e ele se limitou a colocá-lo em versos”, conta Laila. “Descobrimos que Chico, como todo mortal, também se esquece das coisas.”

A noite é reconstituída por Gomes e Laila quando são indagados sobre passagens de suas vidas que envolvam Chico ou sua obra. Rafael Gomes foi o garoto que cantava de cor A Banda aos 3 anos, e Laila Garin, desde a adolescência, já sabia as falas de Gota d’Água que estariam em sua boca no futuro.

Quase uma década depois, os dois se reencontram no espetáculo criado para marcar os 80 anos do artista, celebrados em junho passado. O musical Nossa História com Chico Buarque entra em cartaz neste final de semana no Sesc Pinheiros, com um elenco de dez atores e atrizes que se revezam na interpretação de vários personagens.

A peça é ambientada em 1968, 1989 e 2022, épocas que remetem a períodos políticos intensos, para narrar a trajetória de duas famílias. O ponto de partida é a amizade entre Beatriz e Carolina, que, em 1968, são vividas por Larissa Nunes e Luísa Vianna, respectivamente. Construção, O Que Será, Roda Viva, Tatuagem e A História de Lily Braun estão entre os clássicos da trilha da montagem.

INFÂNCIA. Além de dirigir, Gomes é coautor do texto com Vinicius Calderoni, que afirma: “Chico sempre foi a perfeição da forma, o lugar mais poderoso que a palavra pode ocupar e comecei a estudar as suas canções e suas letras antes da adolescência”.

O diretor de movimento Fabrício Licursi e o ator Artur Volpi também resgatam histórias de infância. Licursi recupera as viagens de carro com os pais. Sua mãe sempre foi apaixonada por Chico, a ponto de despertar ciúme no marido e causar uma disputa sobre as fitas cassete que rodariam nas viagens: do Chico ou dos Bee Gees, preferidos do pai?

Volpi, por sua vez, traz à tona as primeiras idas ao teatro, uma delas para ver Os Saltimbancos, do italiano Sergio Bardotti e do argentino Luis Enriquez Bacalov, vertida para o português por Chico Buarque. “Ouvia sem parar o CD, decorei falas e músicas e até hoje sei a peça de cabo a rabo”, afirma.

O diretor musical Alfredo Del-Penho foi outro que descobriu Chico na infância. Uma história profissional, entretanto, é guardada com emoção. Em 2014, Del-Penho abriu um financiamento coletivo para viabilizar a produção de dois discos. Quando recebeu a planilha das mais de 800 pessoas que depositaram dinheiro para o projeto, ele quase caiu ao ler o nome de Chico. “Eu tinha divulgado para muita gente, mas não para ele e aquilo me serviu como uma enorme motivação.”

A atriz Larissa Nunes, uma das intérpretes da personagem Beatriz, remete sua formação profissional à descoberta do cantor e compositor. Sua família sempre ouviu música, mas Chico não estava entre os preferidos. “Aos 14 anos, por causa de um trabalho no teatro, ouvi Chico com João e Maria”, conta. “Minha lembrança mais viva é a de descer a Rua da Consolação ouvindo suas músicas a caminho dos ensaios.”

VESTIBULAR. Heloísa Jorge, que também representa Beatriz, relaciona a obra do Chico a um momento de luto. A artista perdeu a mãe aos 18 anos, às vésperas do vestibular de artes cênicas. Na prova, Heloísa teria de cantar Gota d’Água. “Estava destruída pela perda, mas nunca cantei com tanto sentimento. Foi o Chico quem me fez passar no vestibular.”

Em 1994, Odilon Esteves dava os primeiros passos como ator e nunca tinha visto Chico no palco. A passagem do show Paratodos por Belo Horizonte seria a oportunidade de aplaudir o ídolo, mas o ingresso não cabia no seu bolso. O jovem ator, então com 16 anos, aceitou participar de uma contação de histórias em um shopping. “Foram duas semanas e recebi exatamente o valor do ingresso. Fiquei tão ansioso que assisti ao show afônico”, lembra.

Experiente no universo do compositor, a atriz Soraya Ravenle, que interpreta uma das Carolinas, participou de outros três espetáculos relacionados a Chico. Em 2003, nos bastidores do musical Ópera do Malandro, no Rio, ela viveu uma sensação que demorou a crer que fosse verdade. “Sabe aquela rodinha que os elencos costumam fazer antes de entrar em cena? Pois é, naquela noite, Chico apareceu, foi na coxia e, quando vi, estava de mãos dadas comigo”, conta. “Quase não respirava, enquanto um terremoto passava pelo meu corpo e minha alma”, completa.

Nossa História com Chico Buarque

Sesc Pinheiros (Teatro Paulo Autran). Rua Pais Leme, 195, Pinheiros 5ª a sáb., 20h; dom., 18h;

R$ 21/R$ 70. Até 28/2

“Chico sempre foi a perfeição da forma, o lugar mais poderoso que a palavra pode ocupar. Comecei a estudar ele antes da adolescência”

Vinicius Calderoni Coautor da peça

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