O Estado de S. Paulo

Empresas, cantores e influencers ainda têm benefício da pandemia

Programa abre mão de impostos; de janeiro a agosto, foram R$ 9,7 bi

DANIEL WETERMAN ANDRÉ SHALDERS ALVARO GRIBEL

AOrganização Mundial de Saúde anunciou o fim da pandemia de covid-19 em maio de 2023, mas empresas, artistas famosos e influenciadores digitais continuam recebendo um benefício bilionário criado para socorrer setores em dificuldade naquele período. De janeiro a agosto deste ano foram concedidos R$ 9,7 bilhões por meio do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos a 15,2 mil empresas no Brasil, informam Daniel Weterman, André Shalders e Alvaro Gribel. O programa dispensa o pagamento de quatro tributos federais (IR, Pis/Pasep, Cofins e CSLL). Entre os maiores beneficiados estão o iFood, a companhia aérea Azul e hotéis de luxo. As empresas afirmam que usaram o benefício dentro da lei. A Receita Federal diz que não comenta casos específicos.

A Receita Federal divulgou dias atrás pela primeira vez em detalhes os números de um benefício criado na pandemia de covid-19 para socorrer o setor de turismo e eventos. De janeiro a agosto de 2024, foram concedidos R$ 9,7 bilhões em benefícios fiscais por meio do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) a 15,2 mil empresas no País. Entre os maiores beneficiados estão o iFood, a companhia aérea Azul e hotéis de luxo. O período de pandemia considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) foi de 11 de março de 2020 a 5 de maio de 2023.

O Perse permite às companhias deixar de pagar quatro tributos federais (Imposto de

“A lei tinha um objetivo nobre que era socorrer os mais afetados pela pandemia, mas faltou um olhar mais técnico e rigoroso”

Fernando Franco

Advogado tributarista

Renda, Pis/Pasep, Cofins e CSLL) e também alcançou os negócios de artistas famosos e influenciadores digitais, como Felipe Neto, Virgínia Fonseca e Gusttavo Lima (mais informações na pág. B2). Eles usufruíram do benefício porque declaram à Receita Federal exercer atividades que foram enquadradas no programa.

O benefício foi criado no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2021, a fim de socorrer as empresas das áreas de turismo e eventos prejudicadas pelo isolamento social causado pela pandemia. Na época, Bolsonaro vetou a isenção, mas o veto foi derrubado pelo Congresso. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentou acabar com o Perse, mas o benefício foi preservado pelo Legislativo, e sancionado pelo Executivo em maio deste ano após acordo.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fechou uma negociação com parlamentares e limitou o benefício a um custo de R$ 15 bilhões até 2026, além de reduzir o rol de atividades autorizadas a receber as isenções fiscais.

Procuradas, as empresas beneficiadas alegam que usaram o benefício dentro da lei e que foram impactadas pela pandemia de covid-19, o que justificou o pedido para deixarem de pagar tributos federais. A Receita Federal afirmou que não comenta casos específicos e se limitou a encaminhar informações gerais sobre o Perse.

A lista veio à tona com a divulgação, pelo Ministério da Fazenda, das empresas que fizeram a Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária (Dirbi), uma obrigação do governo criada neste ano para companhias que deixam de pagar impostos federais com incentivos da União.

“Todos os dados disponibilizados na planilha foram declarados pelos próprios contribuintes por meio da Dirbi”, disse a Receita.

DISPARIDADE. A prorrogação do benefício levou empresas que cresceram na pandemia, como o setor de entregas por aplicativo, a deixar de pagar impostos, beneficiou grandes companhias, artistas famosos e influenciadores digitais dois anos depois de o Brasil ter decretado o fim da emergência sanitária da pandemia de covid19. Além disso, essas personalidades foram favorecidas neste ano enquanto puderam exercer normalmente suas atividades trabalhando na TV, recebendo patrocínios, fazendo shows pelo Brasil e ganhando dinheiro com vídeos, posts e publicidade na internet.

Para receber o benefício, a empresa não precisa ter registrado perda de receita na pandemia, nem é exigida uma contrapartida como a manutenção de empregos durante o período. Quando o programa surgiu, em 2021, bastava se encaixar em alguma atividade relacionada e o empresário já poderia deixar de pagar imposto.

“A lei tinha um objetivo nobre que era socorrer os mais afetados pela pandemia; mas, na abrangência e no enquadramento, claramente faltou um olhar mais técnico e rigoroso”, diz o advogado tributarista Fernando Franco. “É um contrassenso que influenciador digital, youtuber e empresas que cresceram muito na pandemia sejam beneficiados.”

“O Congresso derrubou o veto sem se preocupar de onde ia sair o dinheiro e criou um programa que foi pensado pela metade”, comenta a tributarista Maria Carolina Gontijo, conhecida como Duquesa de Tax nas redes sociais. “O mais correto na época seria se concentrar em políticas públicas melhores, como crédito subsidiado que poderia ser dado pontualmente e parcelamento de tributos.”

A empresa Play9, que tem o influenciador Felipe Neto como um dos sócios, deixou de pagar R$ 14,3 milhões em impostos entre janeiro e agosto deste ano por meio do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse). A companhia assessora influenciadores digitais, produz vídeos para as redes sociais e faz a gestão de canais de marcas e pessoas.

A Play9 se encaixou no programa em função da produção cinematográfica, uma das atividades que eram contempladas inicialmente no programa, mas acabou ficando de fora na reformulação, em maio deste ano.

A empresa afirmou ao Estadão

que seguiu os requisitos da legislação e que conseguiu na Justiça a implementação do benefício, ainda no governo Bolsonaro, alegando estar entre as companhias afetadas pela pandemia e ter necessidade de atenuar as perdas geradas e garantir empregos.

Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou a medida provisória acabando com o Perse, no ano passado, a Play9 entrou na Justiça para manter a isenção, alegando que o benefício tributário não poderia ser extinto no meio da sua vigência, mas a ação foi extinta com a perda de validade da medida. A empresa não explicou por que ainda recebeu os incentivos até agosto, conforme declaração feita à Receita Federal, que também não esclareceu o motivo.

“Qualquer tentativa de deslegitimar o uso do benefício soa como um ato de má-fé, especialmente ao tentar associá-lo a questões ideológicas e políticas”, disse a empresa em nota.

Nas redes sociais, Felipe Neto afirmou que é sócio minoritário da Play9 e que não participa da gestão financeira da produtora.

O nome dele consta na relação de sócios da empresa na Receita Federal. Além disso, o nome de Felipe Neto serve como atrativo da Play9 para divulgar sua marca. “Minha crença é que o Perse foi uma das poucas boas iniciativas da gestão Bolsonaro, mas, ao que tudo indica, foi incrivelmente mal executado”, escreveu Felipe Neto no X.

A influenciadora Virgínia Fonseca, que só no Instagram tem 51 milhões de seguidores, foi outra contemplada pelo Perse, deixando de pagar R$ 4,5 milhões em impostos entre janeiro e agosto deste ano. A empresa de Virgínia também é voltada para a produção de conteúdo e publicidade nas redes sociais.

Virgínia se notabilizou na internet produzindo conteúdos sobre maquiagem e mostrando o dia a dia da família – ela é nora do cantor sertanejo Leonardo e casada com o cantor e também influenciador Zé Felipe. Virgínia lançou uma marca própria de cosméticos e atualmente é apresentadora do SBT.

“Ninguém desse pessoal está errado. Se você tem um benefício à sua disposição, você tem que usar, é otimização financeira. O erro está na política pública”, comenta a tributarista Maria Carolina Gontijo.

A apresentadora de TV Sabrina Sato também foi beneficiada pelo Perse com isenção de R$ 4,2 milhões neste ano. Ela tem uma empresa com os irmãos Karina e Karin, que administra a sua carreira e de outros artistas. Também aparecem na lista a empresa do comediante Whindersson Nunes, com R$ 426 mil, e a companhia da atriz Deborah Secco, com R$ 932,8 mil.

Procurados, eles não se manifestaram.

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