Em 15 anos, 123 juízes foram ‘punidos’ sem perder salários
Judiciário desembolsa cerca de R$ 59 milhões por ano com esse contingente; número de casos sobe
WESLLEY GALZO
Nos últimos 15 anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e tribunais dos Estados aposentaram de forma compulsória 123 juízes, mas eles não perderam direito aos rendimentos. Prevista na Lei Orgânica da Magistratura, a aposentadoria compulsória é a punição mais dura que um juiz pode sofrer. Em média, um magistrado recebe R$ 37,2 mil por mês no Brasil, o que representa gasto anual de R$ 59 milhões com esse contingente. As razões para a aposentadoria compulsória vão de manifestações políticas em período eleitoral a assédio sexual e corrupção passiva. Das 88 aposentadorias compulsórias impostas pelo CNJ no período, 13 ocorreram em 2023. Em 2022 foram duas e, em 2021, quatro.
Levantamento do ‘Estadão’ buscou dados sobre a aplicação da sanção máxima prevista na Lei Orgânica da Magistratura; primeiro aposentado pelo CNJ recebe R$ 32 mil por mês
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tinha quatro anos de existência quando determinou a primeira aposentadoria compulsória de um magistrado no País. O alvo da decisão, de 2009, foi o ex-juiz Rivoldo Costa Sarmento Junior. Na condição de plantonista, ele ordenou que a Eletrobras pagasse R$ 63 milhões a um portador de títulos públicos. O CNJ avaliou que a medida era injustificável. Passados 15 anos da punição, Sarmento Jr. recebe, em média, R$ 32 mil brutos por mês, com direito a 13.º salário. Em dezembro do ano passado, um benefício elevou o vencimento a R$ 107 mil.
O juiz aposentado recebeu, no último mês de 2023, R$ 70 mil a título de Parcela Autônoma de Equivalência (PAE), um penduricalho concedido a juízes e promotores por terem ingressado na carreira numa época específica. Esse benefício foi criado por lei, em 1992, com o objetivo de equiparar as remunerações de autoridades dos três Poderes.
“É difícil aquilatar se esse instituto (aposentadoria compulsória) é benéfico ou maléfico, porque o que se procura preservar é a segurança jurisdicional dos juízes. Para mim foi um castigo, porque não foi comprovada nenhuma irregularidade na minha conduta. A aposentadoria não foi benéfica. Foi um castigo”, disse Sarmento Jr. ao Estadão. “Há um movimento muito grande de política dentro dos tribunais, então eu preferi me confortar com a aposentadoria e seguir a vida”, afirmou o ex-juiz.
Assim como Sarmento Jr., outros 122 magistrados foram aposentados compulsoriamente pelo CNJ ou pelos respectivos tribunais, desde 2006. Levantamento do Estadão mostra que apenas o conselho foi responsável pelo afastamento de 88 magistrados. Outros 35 tiveram punição definida por tribunais regionais ou estaduais.
LEVANTAMENTO. O Estadão procurou os seis Tribunais Regionais Federais (TRFs), os 27 tribunais estaduais e do Distrito Federal (TJs), os 24 Tribunais
Regionais do Trabalho (TRTs) e os três Tribunais de Justiça Militar (TJMs), pois também podem impor sanções por meio de processos administrativos disciplinares (PADs). Apenas 16 das 60 Cortes demandadas responderam dentro do prazo estabelecido pela reportagem.
Os motivos de aposentadoria compulsória vão desde manifestações políticas em período eleitoral até a prática de assédio sexual, caso de um juiz do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) punido por investidas contra ao menos quatro jovens que trabalhavam em empresas terceirizadas. Há, ainda, casos de corrupção passiva, como o ocorrido com um juiz da cidade de Nossa Senhora de Nazaré (PI) que cobrou dinheiro da prefeitura em troca de decisões. Em 2023, houve um salto no número de magistrados aposentados de forma compulsória pelo CNJ. Foram 13, ante dois no ano anterior e quatro em 2021.
Um dos casos, como mostrou o Estadão, foi o do juiz Guilherme da Rocha Zambrano,
Sanção Motivos da punição vão de manifestações políticas em período eleitoral até a prática de assédio sexual
substituto na 13.ª Vara do Trabalho de Porto Alegre. Ele foi condenado à aposentadoria compulsória por comprar cinco carros de luxo em leilões. A avaliação foi a de que o magistrado incorreu em atos de comércio, com a participação “sistemática” em leilões de automóveis e a constituição de uma sociedade comercial, em violação à Lei Orgânica da Magistratura. Procurado, ele não se manifestou sob a alegação de que não pode comentar processo pendente de julgamento e recomendou a leitura de sua defesa. Nos autos, negou irregularidades.
IMPACTO. Um magistrado brasileiro recebe, em média, R$ 37,2 mil, segundo o painel de remuneração do CNJ. Na Justiça Federal, a média salarial em março deste ano ficou em R$ 38,2 mil, enquanto na esfera estadual o vencimento básico médio chega a R$ 36,3 mil. Essas cifras fazem com que o gasto anual do Poder Judiciário com os 123 juízes e desembargadores aposentados compulsoriamente alcance cerca de R$ 59 milhões. O montante pode ser ainda maior, já que o cálculo da aposentadoria forçada é feito sobre o tempo de contribuição e há casos de juízes que continuam recebendo penduricalhos, como Sarmento Jr.
“A aposentadoria compulsória me parece que não está no âmbito de uma prerrogativa justificável, mas de um privilégio” Álvaro Jorge
Professor de Direito Administrativo da Fundação Getulio Vargas (FGV)
PUNIÇÕES. Prevista na Lei Orgânica da Magistratura, a aposentadoria compulsória é a punição mais dura que um magistrado pode sofrer. Quando essa sanção é imposta, o condenado para de trabalhar, mas continua a receber salário proporcional pelo tempo de contribuição. O argumento jurídico que sustenta essa prática é o de que os juízes, promotores e militares precisam de autonomia para exercer a função e, portanto, não podem agir com medo de serem penalizados com a perda da remuneração. Há outras formas de punição, como censura, advertência e remoção compulsória (mudança de fórum ou comarca). A única forma de um juiz deixar de receber salário é em caso de condenação criminal.
“Determinadas carreiras recebem ou merecem receber prerrogativas para o exercício da função, mas isso acaba mal casando com uma tradição brasileira que eu chamo de ‘corporações de ofício’, que se protegem e procuram transformar prerrogativas em privilégios. Prerrogativas são questões constitucionalmente justificáveis e explicáveis. Privilégios, não”, disse o professor de Direito Administrativo Álvaro Jorge, da Fundação Getulio Vargas (FGV). “A aposentadoria compulsória me parece que não está no âmbito de uma prerrogativa justificável, mas de um privilégio.”
‘CONTRAPARTIDA’. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), por sua vez, afirmou que a aposentadoria compulsória “não é um benefício do juiz, mas a contrapartida pelos pagamentos realizados ao regime de previdência ao longo do tempo de exercício da função”. “Há motivos históricos para a existência da aposentadoria compulsória com recebimento de proventos proporcionais”, disse a entidade, por meio de nota.
“Além disso, faz parte das prerrogativas da magistratura que contribuem para a manutenção da independência judicial, pois garante aos magistrados e magistradas a prerrogativa de decidir com independência e imparcialidade, sem sofrer represálias, mesmo quando contrariam o poder vigente”, destacou a AMB. “Como quaisquer cidadãos, juízes que cometem crimes graves devem responder perante o Poder Judiciário – e podem ser condenados, com observância do devido processo legal.”
O ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino, em breve passagem no Senado – em fevereiro, antes de assumir vaga na Corte –, apresentou proposta de emenda à Constituição (PEC) para acabar com as aposentadorias compulsórias de juízes, promotores e militares que cometerem delitos graves. A PEC sugere a exclusão do serviço público. •
“(A aposentadoria compulsória) não é um benefício do juiz, mas a contrapartida pelos pagamentos realizados ao regime de previdência ao longo do tempo de exercício da função. Há motivos históricos para a existência da aposentadoria compulsória com recebimento” Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
Em nota
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