As oito tentativas de Bolsonaro de ficar com os diamantes
O ex-presidente alega que não houve nada irregular, mas a sequência de fatos ao longo de meses pode indicar o contrário
ADRIANA FERNANDES ANDRÉ BORGES
O ex-presidente Jair Bolsonaro atuou pessoalmente para tentar liberar o conjunto de joias e relógio de diamantes que seu governo tentou trazer de forma ilegal para o País. Ele chegou a acionar três ministérios e militares para obter a liberação dos objetos.
Como revelou o Estadão na sexta-feira, 03, o presente milionário dado pelo regime saudita acabou apreendido pela Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos. Eles estavam na mochila de um militar, assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, que viajara ao Oriente Médio em outubro de 2021.
Entenda de que forma Bolsonaro usou a estrutura do governo para reaver as joias:
1.
Nada a declarar
No dia 26 de outubro de 2021, o então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, e seu assessor Marcos André Soeiro desembarcaram no Aeroporto de Guarulhos do voo 773, proveniente da Arábia Saudita. O assessor trazia na mochila o estojo com as joias (um colar, um par de brincos, um anel e um relógio) para o casal Bolsonaro, acompanhadas de um certificado de autenticidade da marca Chopard.
Ele fez a primeira tentativa de entrar com as joias ilegalmente no País. O militar optou pela saída “nada a declarar” para deixar a área do aeroporto sem registrar a posse dos bens estimados em 3 milhões de euros (R$ 16,5 milhões), infringindo a legislação. A manobra foi frustrada. Os servidores da Receita pediram para conferir a bagagem logo que ele passou pelo raio X. Com a descoberta, os itens foram apreendidos.
2.
A carteirada
O ex-ministro e o servidor haviam representado o governo brasileiro na reunião de cúpula “Iniciativa Verde do Oriente Médio”, realizada na Arábia Saudita.
Com a apreensão das joias, o ministro voltou para a área restrita do aeroporto, mesmo após ter passado pela alfândega, o que geralmente não é permitido, e fez a segunda tentativa de entrar com as joias no País. Ele alegou que era um presente para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. O ex-ministro repetiu a mesma versão ao Estadão, acrescentando que o relógio era para o ex-presidente, em entrevista na sexta-feira, 03.
No ato de apreensão, foi dada ao almirante a opção de declarar que se tratava de um presente de um governo para outro, mas o então ministro não a aceitou. Se tivesse feito essa opção, as joias teriam sido tratadas como propriedade do Estado brasileiro e liberadas.
3.
Privado X público
No dia 29 de outubro de 2021, o chefe de gabinete adjunto de Documentação Histórica do gabinete pessoal do presidente da República, Marcelo da Silva Vieira, enviou um ofício para o chefe de gabinete do ministro de Minas e Energia, José Roberto Bueno Júnior. Ele afirmou que o encaminhamento das joias seria feito e que a análise seria para a incorporação ao “acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”.
A regra sobre este assunto é clara. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), em julgamento realizado em 2016, ex-presidentes só podem ficar com lembranças de caráter “personalíssimo” ou de uso pessoal, como roupas e perfumes.
4.
Relações Exteriores
O Ministério das Relações Exteriores foi acionado pelo presidente Bolsonaro e pediu no dia 03 de novembro de 2021 à Receita para que tomasse “providências necessárias para liberação dos bens retidos”. Após reiteradas negativas da Receita, o governo passou então a dizer que as joias seriam para o acervo, mas sem especificar qual.
“Considerando a condição específica do Ministro — representante do Senhor Presidente da República; a inviabilidade de recusa ou devolução imediata de presentes em razão das circunstâncias correntes; e os valores histórico, cultural e artístico dos bens ofertados; faz-se necessário e imprescindível que seja dado ao acervo o destino legal adequado”, diz o ofício do Itamaraty ao qual o Estadão teve acesso.
Em resposta, a Receita voltou a informar que só seria possível fazer a retirada mediante os procedimentos de praxe nestes casos, com quitação da multa e do imposto devidos.
5.
Minas e Energia
No mesmo dia 03 de novembro de 2021, o gabinete do então ministro Bento Albuquerque reforçou a pressão sobre a Receita em mais uma tentativa para conseguir recuperar as joias e entregá-las a Jair Bolsonaro.
Em ofício, pediu a “liberação e decorrente destinação legal adequada de presentes retidos por esse Órgão”. Assim como o Itamaraty, Albuquerque também passou a dizer que a destinação das joias seria o acervo, mas sem dizer qual. A Receita manteve a apreensão. 6.
Comando da Receita No fim do mandato de Bolsonaro, o então secretário da Receita Federal, Julio Cesar Viera Gomes, entrou em campo para liberar o material. No dia 28 de dezembro de 2022, Gomes enviou ofício para a área de alfândega do órgão em São Paulo pedindo a liberação das joias. Os servidores do órgão responderam novamente que só liberariam as joias mediante pagamento do imposto.
7.
O gabinete de Jair Bolsonaro
Em 28 de dezembro de 2022, após seis tentativas frustradas, o próprio Bolsonaro entrou em ação. O ex-presidente enviou um ofício ao gabinete da Receita Federal para solicitar que as joias fossem destinadas à Presidência da República, em atendimento ao ofício da “Ajudância de Ordens do Gabinete Pessoal do Presidente da República”. Novamente, o pedido foi negado.
8.
O voo da FAB
A última tentativa de reaver as joias foi em 29 de dezembro de 2022, quando Bolsonaro estava prestes a deixar a Presidência da República. Mais uma vez, o ex-presidente se colocou na linha de frente da operação para pegar as joias e tentou forçar a liberação das peças pela Receita.
Por determinação de Bolsonaro, um funcionário do governo pegou um jatinho da Força Aérea Brasileira (FAB) e desembarcou no aeroporto de Guarulhos, dizendo que estava ali para retirar as joias. “Não pode ter nada do (governo) antigo para o próximo, tem que tirar tudo e levar”, argumentou o militar, segundo relatos colhidos pelo jornal.
A justificativa do enviado de Bolsonaro desmente a versão do ex-presidente, que, após a revelação da reportagem, passou a dizer que as joias seriam para o acervo oficial.
O Estadão localizou a solicitação do chefe da Ajudância de Ordens do Presidente da República, à época o tenente-coronel Mauro Cid, para que a FAB levasse o primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva até São Paulo. O documento dizia que a viagem de Silva era “para atender a demandas do Senhor Presidente da República naquela cidade”, com retorno “em voo comercial no trecho Guarulhos para Brasília”.
Em nenhum momento, Bolsonaro disse que as joias seriam para o acervo da Presidência. O caso também nunca foi divulgado pelo governo anterior. Só veio a público com a reportagem do Estadão.
AS REGRAS. Como as joias foram consideradas bens do viajante, seria preciso pagar os impostos para liberá-las. A única maneira possível de se retirar qualquer item apreendido pela Receita na alfândega – e isso vale para itens com valor superior a US$ 1 mil – é fazer o pagamento do imposto de importação, que equivale a 50% do valor estimado do item, além de uma multa, que pode ser de 25% (em caso de pagamento no momento da apreensão) ou 50% (se em momento posterior), pela tentativa de entrar no País de forma ilegal.
Se as joias fossem considerados presentes do regime saudita ao governo brasileiro, elas passariam a compor o patrimônio da União e seria necessária a formalização oficial.
Conforme revelado pelo Estadão, depois de passarem mais de um ano em poder da alfândega, os itens milionários seriam oferecidos em leilão de itens apreendidos pela Receita por sonegação de impostos. O leilão, porém, foi suspenso, porque as joias passaram a ser enquadradas como prova de possíveis crimes.
O Ministério da Justiça acionou a Polícia Federal para investigar os possíveis crimes de descaminho, peculato e lavagem de dinheiro, entre outras ilegalidades.
POLÍTICA
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2023-03-05T08:00:00.0000000Z
2023-03-05T08:00:00.0000000Z
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