O Estado de S. Paulo

Bendito ócio

Ficar sem fazer nada desperta a criatividade e alivia o estresse

ANA LOURENÇO

Silêncio Ficar quieto proporciona momentos de autoconhecimento e nos ajuda a escutar o corpo

Quando foi a última vez que você fez nada? E não digo sentar e assistir à TV sem prestar atenção ou mexer no celular sem um objetivo específico. Mas sim, parar e prestar atenção no passar da vida, sem ter pressa alguma ou a necessidade de ocupar o tempo com algo inútil?

A verdade é que com a correria do dia a dia e o grande número de estímulos constantes, com notificações que surgem o tempo todo no celular, a maior parte das pessoas não encontra tempo para, de fato, descansar a mente. No entanto, é justamente esse tempo de ócio que ajuda a termos mais produtividade, mais criatividade e, claro, mais qualidade de vida.

“A gente está vivendo uma sociedade de alta performance. O que eu observo é que as pessoas estão muito detidas na quantidade de produção e não na qualidade”, analisa a psicóloga Aline Vernier.

Em tempos de excessos, quando se trabalha demais, se consome demais e se cansa na mesma proporção, o estresse e a ansiedade são frequentes. E apesar de a pandemia ter contribuído para isso – hoje, o Brasil é um dos líderes em casos de ansiedade e depressão no mundo –, essa alta demanda começa muito antes, com a Revolução Industrial. Com o surgimento das máquinas que realizam e facilitam boa parte do trabalho manual, a sociedade passa a ter mais tempo para si mesma. Mas em vez de valorizar esse tempo livre, passamos a condená-lo e qualquer sinônimo de descanso é malvisto.

“A partir desse momento, entramos em uma velocidade de trabalho que, desde então, só acelera”, explica Izabela Jatene, antropóloga e doutora em Ciências Sociais pela PUCRIO. “Então, é importante ter em mente que nós não fomos adaptados nem temos permissão de não ter nada para fazer”, alerta ela.

Foi assim que a compradora Bruna Freschinetti, de 26 anos, se sentiu durante pouco mais de um ano. A rotina exaustiva de trabalho – imposta pelos chefes e por sua própria cobrança interna – fez com que ela entrasse em depressão. “O dia a dia me consumia muito. Claramente, era um trabalho que precisava de mais gente, mas eu fazia sozinha. Chegava às 7h da manhã e saía às 21h”, conta ela, que também levava trabalho para casa e o fazia durante os fins de semana. “Era um medo de não ser boa o suficiente, de ser mandada embora no meio da pandemia.”

O diagnóstico de depressão e ansiedade foi o suficiente para fazer com que ela buscasse outro lugar e colocasse sua saúde mental como prioridade. Estabeleceu que um dia por semana iria se desligar de tudo. “Domingos são sagrados para mim. Eu nem ligo o celular.”

AUTOCONHECIMENTO. Como ser social, o ser humano aprecia estar acompanhado. No entanto, os momentos de solitude são essenciais para nos conhecermos melhor. “Muitas vezes, a pessoa não consegue ficar quieta consigo mesma porque o pensamento faz tanto barulho interno, causa tanta ansiedade, que ela se coloca ocupações, justamente para não se ouvir”, indica a psicóloga Aline.

Segundo ela, proporcionar momentos de autoconhecimento nos ajuda a escutarmos o corpo. De forma que não é preciso vir uma doença ou um problema muito sério para que a pessoa pare e descanse.

“Quando me falaram que eu estava estafado, fui procurar um hobby. E foi o pior ano da minha vida, porque era desesperador estar gostando de fazer algo e não poder porque estava preso ao trabalho”, lembra o chef de cozinha Gustavo Pereira, de 47 anos. Após 20 anos de carreira na publicidade, como diretor de uma grande agência, ele sentiu que sua paixão estava em outro lugar – que não era mais o escritório. “Em 2015, cheguei à conclusão de que eu precisava parar.”

Aproveitou os 365 dias de ócio para se inspirar em cada coisinha que cruzava seu caminho. “Grande parte das receitas que eu coloco hoje no meu restaurante vieram dessa época, porque eu tinha tempo, testava muito e errava sem culpa, sem medo”, conta.

Hoje, na cozinha, ele propõe a mesma experiência de pausa para os seus clientes. “Sou mineiro da fazenda. A minha avó me ensinou a cozinhar com amor, a comer em volta das mesas contando histórias e a desfrutar a comida”, diz. “Então eu sempre sirvo café coado e conto como foi feito esse café, envolvendo a pessoa. Porque se ela não tem cinco minutos para parar, eu não quero que ela tome o café. Não temos expresso aqui. É só coado, e é só com a explicação”, garante.

Ele defende o ócio como uma ferramenta para despertar a criatividade. “O grande erro das pessoas é achar que o

ócio criativo é prejudicial. No momento em que eu decido relaxar, estou me ajudando de duas formas: na minha saúde mental, como pessoa física, e como pessoa jurídica, porque vou chegar mais amável, tranquilo e talvez com uma ideia que eu não tinha pensado no trabalho”, reflete.

SATURAÇÃO. O criador do termo “ócio criativo”, o sociólogo italiano Domenico De Masi, defende, desde 1995, que o cérebro não pode ser forçado a produzir quando já está saturado de informações. Porém, quando a pessoa se encontra satisfeita e feliz, as ideias tendem a chegar de forma inesperada. Por isso, é preciso saber conciliar trabalho, estudos e lazer, sem se sobrecarregar em nenhum momento. Essa leveza faz com que o cérebro relaxe, organize as informações aprendidas, reflita sobre as suas verdadeiras necessidades e pense de maneira diferente do que a costumeira.

“O ócio criativo é extremamente importante para a nossa criatividade. No momento em que a gente está relaxado – seja num banho, ao lavar a louça, ao passear no parque – é que a gente consegue achar soluções criativas para os nossos problemas”, diz a consultora e criadora de conteúdo Ana Carvalho. Especialista em ensinar sobre planejamento criativo, Ana entendeu que o descanso fazia parte do seu trabalho. “Quando você entende essa importância, você transforma isso em hábito e para de sentir a culpa de não estar produzindo.”

É importante diferenciar esse ócio da procrastinação. O tempo de descanso deve ser usado com responsabilidade, normalmente sem a presença do celular, para que você escolha, conscientemente, não fazer nada, em vez de fugir de uma responsabilidade.

Por isso, a organização do tempo é indispensável para que momentos de descanso e contemplação caibam em sua vida. “A geração de agora tem muito isso de se culpar por não estar produzindo e de mostrar para os outros como está produzindo”, explica a psicóloga. Dessa maneira, o tempo que poderia ser usado para o descanso é gasto nas redes sociais – o que, definitivamente, não ajuda o cérebro a descansar.

“Com o celular, a gente acaba sobrecarregando nosso cérebro, como se tivéssemos a obrigação de estar sempre ocupado”, afirma a neuropsicóloga Camilla Monti Oliveira.

Para pensar na ideia de descanso para o cérebro, é preciso entender seu funcionamento. “A gente sabe que o cérebro gosta de rotina, então qualquer coisa que a gente faça, é preciso de treino. Você não vai conseguir tirar uma tarde inteira para fazer nada. Mas talvez se começar com cinco minutos, depois aumentar para 10, para 15, vai chegar em um tempo adequado para sua rotina, sem culpa”, indica ela.

PELO MUNDO. Em algumas culturas, o conceito faz parte da vida cotidiana. O dolce far niente, “a doçura de não fazer nada”, é um exemplo disso. Para os italianos, um dos prazeres da vida está em apreciar o tempo – seja bebendo um vinho, assistindo ao pôr do sol ou brincando por horas com um pet. O estresse, a pressão e a pressa são proibidos.

Dolce far niente Treino pode começar com 5 minutos sem fazer nada, depois aumenta para 10, para 15... Sem culpa

Na Espanha, a hora da siesta depois do almoço é sagrada – em muitas cidades, as lojas fecham para que donos e funcionários descansem. Já na Holanda, o conceito de niksen traduz a capacidade de se desligar completamente do mundo e de si mesmo para trabalhar no desenvolvimento pessoal, fazendo nada, apenas observando. No Japão, isso se relaciona à contemplação da natureza e à transitoriedade do tempo – muito praticado em algumas meditações.

Em resumo, o tempo para refletir pode modificar a sua vida para melhor. Foi o que sentiu a instrutora Juliana Carvalhaes, de 39 anos. “Os efeitos foram aos poucos, mas um belo dia eu percebi que estava sempre alegre, que gostava de sair de casa, fazer amigos, as pessoas me achavam engraçada, foi quando eu percebi que eu tinha mudado”, conta.

Aos 15 anos, depois de uma crise de síndrome do pânico, seu médico recomendou a meditação transcendental. “É uma técnica que tem um efeito muito rápido de descanso. Só que depois que eu tive filhos (Gabriel, de 4 anos, e Helena de 6) eu percebi que só descansar para mim não era o bastante. Eu precisava também não surtar”, lembra. “Foi quando fui estudar o mindfullness, que me ajudou a reconhecer os meus gatilhos, a perceber o que me faz bem e o que não faz.”

Ela conta que a mesma transformação que sentiu depois de começar a prática, abandonando o estresse e a pressa do dia a dia para se tornar alguém mais calma e positiva, ela percebe hoje em suas alunas – a maioria delas mães entre 35 e 45 anos. “Eu noto muito mais leveza nelas ao se relacionarem, principalmente quanto à culpa. Percebo que elas estão vivendo melhor, sem cobrança interna em relação à maternidade, à comida, ao trabalho.”

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2022-08-13T07:00:00.0000000Z

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