O Estado de S. Paulo

Caco Ciocler utiliza a ficção para escancarar as ações machistas

Ele é o vilão Tzvi, um traficante de mulheres em ‘As Polacas’, o novo filme de João Jardim que deve estrear em 2023

LUIZ CARLOS MERTEN

É a cena da virada no longa As Polacas, que João Jardim acaba de filmar neste fim de semana, no Rio. A história das polacas já foi parcialmente contada por André Sturm em seu drama sobre a Revolta da Vacina, que agitou o Rio de Janeiro em 1904. A nova versão da história das mulheres polonesas que foram atraídas para vir ao Brasil com promessas de uma vida melhor, mas foram forçadas a se prostituir, ganha novo foco. O conflito de fundo é a luta das polacas para ter direito a enterro no cemitério judaico. Até na morte as prostitutas sofriam – sofrem? – discriminação.

A cena filmada nesta sexta é decisiva. O cenário é uma mansão no Alto da Boa Vista. É o bordel. Tapeçaria pesada, móveis de cores escuras. A mais bela das polacas está sendo leiloada. Caco Ciocler faz o leiloeiro, Tzvi. Anuncia a mercadoria e Valentina Herszage – a personagem Rebeca – sai de trás da cortina. Tzvi estimula a clientela masculina. “Olhem só essa beleza.” Rebeca veio para o Brasil com o filho. Conheceu Tzvi no navio. Enganou-se a respeito dele. Nunca fez nada parecido com o que se espera dela nesta noite. Os lances vão aumentando o preço, até que um dos homens faz a oferta irrecusável.

“Dou-lhe um, dou-lhe duas, dou-lhe três, e o cavalheiro leva a mercadoria.” A cena está sendo filmada em plano-sequência e em nenhum momento se vê a nudez da atriz. Tem sempre uma cabeça para tapar a vista. É a ideia, diz o diretor. “Tenho uma diretora de fotografia mulher (Louise Botkay), uma produtora (Iafa Britz) e uma atriz que fazem valer seus direitos feministas. Nem que fossem homens mostraríamos. Se explorássemos a nudez de Rebeca estaríamos agindo como os canalhas que, na ficção, se aproveitam dela.”

Algo ocorre na cena que o repórter acompanha. “Ao bater o martelo, Tzvi dá-se conta de que ama Rebeca, e isso vai mudar toda a perspectiva da história”, avalia Ciocler.

Muita coisa vai mudar, na própria forma. João Jardim filma a cena em plano contínuo, mas logo em seguida começa a fazer as coberturas. Planos de Tzvi, Rebeca, do “comprador”. “A cena será cortada na edição”, explica o diretor. Em sua carreira Jardim tem alternado fato e ficção. Fez documentários – Janela da Alma, Pro Dia Nascer Feliz. Ficções – Getúlio, As Polacas. Trabalha nas bordas de ambos – Amor? Jardim tem preferência? “Não necessariamente. Gosto de fazer cinema, de estar no set, de encontrar

“Gosto de fazer cinema, de estar no set, de encontrar as pessoas num bom documentário e tirar o melhor dos atores para tornar verdadeiros os personagens de ficção” João Jardim

Diretor

“É a história de mulheres judias exploradas por um judeu. Para mim, o tema é a inocência perdida” George Moura

Roteirista

as pessoas num bom documentário e tirar o melhor dos atores para tornar verdadeiros os personagens de ficção.” Valentina Herszage veio de duas novelas seguidas na Globo, na faixa das 7. O repórter comenta a esquisitice dessas participações. Numa, Pega Pega, era filha de Mateus Solano e, na outra, colada, Quanto Mais Vida Melhor!, era a mulher com quem ele queria ficar. Ficou uma coisa incestuosa. No cinema, foi a jovem Hebe.

LONGO CAMINHO.

“A personagem Rebeca é prostituída e o explorador, ao se apaixonar por ela, ainda quer ter o mando do seu corpo”, afirma Jardim.

Ciocler e a produtora Iafa Britz são judeus. Destacam a importância da discussão sobre o cemitério. Iafa é a mais perfeita encarnação do sincretismo no cinema brasileiro. Fez filmes sobre espiritismo (Nosso Lar), uma freira católica (Irmã Dulce) e, agora, judaísmo (As Polacas). “Sou apaixonada por boas histórias”, resume. A de As Polacas nasceu há oito anos com o diretor argentino Daniel Burman. Ele apresentou o projeto a Guel Arraes e George Moura, na Globo Filmes. Foi um longo caminho até chegar a Iafa e João Jardim.

Moura assina o roteiro final. “É a história de mulheres judias exploradas por um judeu. Para mim, o tema é a inocência perdida.” Não por acaso, o filme já se chamou, lá atrás, O Fim da Inocência. E Caco Ciocler: “O feminicídio tem estado presente na sociedade brasileira, e não só aqui. Na pandemia, surgiram novos relatos de abusos e violência doméstica. Como ator, acho importante escancarar o machismo no que tem de mais nocivo”. A estreia está prevista para o ano que vem. •

CULTURA & COMPORTAMENTO

pt-br

2022-08-13T07:00:00.0000000Z

2022-08-13T07:00:00.0000000Z

https://digital.estadao.com.br/article/282333978687483

O Estado