O Estado de S. Paulo

Calor muda cara do turismo na Europa

Viajantes alteram destinos e países

PAIGE MCCLANAHAN TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Em meados de julho, no pico da temporada turística do verão, as notícias não eram nada boas na Europa: um “defeito de superfície”, ocasionado pelo calor, interditou brevemente a rodovia que liga Londres ao aeroporto de Luton. Trens estavam atrasados ou haviam tido viagens canceladas em todo o Reino Unido em razão de trilhos superaquecidos.

Mais de duas dúzias de estações meteorológicas francesas registravam as temperaturas mais altas de todos os tempos. E incêndios florestais varriam regiões turísticas de França, Espanha, Portugal, Itália e Grécia. “Do centro da cidade, se você olhasse para a Acrópole, à distância, era possível ver o vermelho das chamas”, afirmou Peter Vlitas, vice-presidente do Internova Travel Group, que estava em Atenas durante os incêndios, por fim controlados pelos bombeiros.

Vlitas sentia o cheiro da fumaça em seu hotel e, por vezes, teve de fechar a janela para impedir que cinzas entrassem no quarto. Mas a vida em Atenas, afirmou ele, continuou a de sempre. “As tavernas lotam à noite e os táxis estão disputados, o que sempre é um grande barômetro”, afirmou Vlitas, quando ainda estava em Atenas. “A Grécia está experimentando o mesmo que o restante da Europa: um número recorde de turistas.”

AJUSTES.

Depois de mais de dois anos adiando as férias, os turistas estão relutantes em cancelar suas viagens mesmo em razão do clima alarmante que ganha as manchetes. Mas várias pessoas no setor relatam um crescente número de clientes ajustando seus planos em função das altas temperaturas, seja mudando destinos, reformulando roteiros matinais e vespertinos ou adiando em um ou dois meses suas viagens.

Dado o ritmo e a trajetória das mudanças climáticas, essas transformações tendem a se tornar mais comuns – e mais necessárias – nos próximos anos. Isso é verdadeiro especialmente na Europa, região que pesquisadores meteorológicos têm descrito como um “hot spot” de calor severo no verão, onde eles preveem que as ondas de calor serão cada vez mais longas, mais frequentes e mais intensas.

Mesmo com o número elevado de turistas neste verão, já existem sinais sutis de que o calor está ocasionando mudanças capazes de se transformar em norma. A temporada turística de verão na Europa começa a se estender para os meses mais calmos (e mais frescos) de abril, maio, setembro e outubro, à medida que muitos turistas mudam seus itinerários para o norte e regiões costeiras.

NOVOS ITINERÁRIOS.

Karen Magee, vice-presidente e gerentegeral da agência de turismo In the Know Experiences, afirmou que, a partir de meados de julho, sua empresa começou a receber pedidos de clientes buscando ajustar seus planos de viagem por causa do calor.

“Foi algo inédito”, afirmou Magee. “Não consigo me lembrar da vez em que as pessoas nos ligaram dizendo: ‘Talvez deixemos de ir a Roma e optaremos por uma cidade mais perto da praia’. Ou talvez

encurtando sua permanência na cidade e preferindo circular pelo país antes do que haviam planejado.”

Dolev Azaria, fundadora da Azaria Travel, ajudou uma família a fazer uma mudança de última hora para passar os primeiros cinco dias de sua viagem em Amsterdã, em vez de Roma, apenas para evitar o calor. Outros clientes desistiram dos planos de ir à Toscana e mudaram o itinerário para a Sicília, onde há pelo menos a brisa do Mediterrâneo.

REEMBOLSO.

“O objetivo é mudar a viagem do cliente de uma ‘ilha de calor’ para algum lugar próximo à beira-mar”, afirmou Azaria. “Então, cidades como Copenhague e Amsterdã emergem – lugares que nossos clientes talvez não tivessem planejado visitar originalmente.”

Mas Azaria afirmou que, até agora, não teve nenhum cancelamento completo: “Há muita demanda reprimida. Estamos basicamente condensando dois anos de viagens neste verão.”

Planejando as atividades do próximo ano, Azaria tem como perspectiva uma temporada prolongada de verão. “Já estamos vendo o verão se estendendo até o fim de setembro ou meados de outubro”, afirmou.

Qualquer turista que possa considerar desistir de uma viagem em razão do calor extremo pode descobrir que políticas de cancelamento deixam pouco espaço para devoluções de dinheiro. Clientes de Jude Vargas, conselheira de viagens e fundadora da agência Pyxis Guides, a procuraram preocupados com a previsão de calor durante a viagem que haviam marcado com os filhos para Portugal, mas acabaram mantendo os planos.

“Eles estavam preocupados com as crianças debaixo do sol”, afirmou Vargas. “Mas por causa das políticas de cancelamento, eles perceberam que estavam comprometidos’.”

Seguros de viagem dificilmente fazem ressarcimentos para turistas que cancelam uma viagem por causa de uma onda de calor, afirmou Dan Drennen, diretor de vendas e marketing da seguradora Travel Insurance Center. “A única apólice aplicável a esse cenário é um seguro que prevê cancelamento por razão indeterminada”, afirmou Drennen.

De acordo com ele, esses tipos de apólice são normalmente 40% mais caras do que os seguros normais e geralmente preveem a devolução de, no máximo, 75% do valor pago pela cobertura total da viagem. Ele aconselhou turistas a pesquisar bem e conversar com um corretor antes de comprar seus seguros, para que entendam o que está coberto ou não. “As pessoas acham que essas apólices preveem tudo, e não é assim”, afirmou.

Demanda Agências de viagem estão concentrando nesta temporada 2 anos de viagens reprimidas pela pandemia

AJUSTES. Turistas comprometidos com suas viagens podem se preparar de maneira prática para lidar com o calor. Vargas tem ajudado seus clientes a mudar o horário de passeios que fariam à tarde para horas mais frescas no início da noite, mas em razão dessa temporada turística estar tão movimentada, assentos nesses horários de passeio podem ser difíceis de encontrar no último minuto.

Ela também recomenda um spray de água com um ventiladorzinho acoplado, dispositivo portátil que ela descreveu como “salvador, especialmente se você tem filho”. Levar um guarda-chuva para usar como sombrinha também ajuda. Vargas acrescentou que, em seu planejamento para o ano que vem, ela está priorizando meses como maio e outubro.

Héctor Coronel Gutiérrez, diretor de turismo da Câmara Municipal de Madri, aconselha turistas que visitam sua cidade no verão a buscar espaços verdes, incluindo o Parque Madrid Río, que tem várias áreas sombreadas e uma fonte na qual as crianças podem entrar e se refrescar na água. Ele acrescentou que, ainda que julho e agosto sejam quentes, a cidade tende a estar mais tranquila nesses meses do que em maio ou junho, então é fácil evitar multidões.

ESPANHA.

Também é fácil encontrar ares-condicionados na Espanha, mas turistas americanos podem achar os espaços internos mais cálidos do que estão acostumados. Nesta semana, em uma iniciativa para reduzir o consumo de energia, o governo espanhol anunciou que shopping centers, salas de cinema, aeroportos e outros locais não poderão mais definir o termostato dos aparelhos de ar-condicionado abaixo de 27ºc.

Ainda assim, o escritor de livros de viagens e operador de turismo Rick Steves, que voltou recentemente da Espanha, afirmou que turistas que viajam no verão podem, na realidade, se sentir mais à vontade em Madri do que em cidades como Londres, Paris ou Frankfurt, onde temperaturas altas – e ares-condicionados – não são a norma.

“Lugares já acostumados com o calor infernal, como a Espanha, têm um estilo de vida que já acomodou isso – as pessoas fazem sesta, estendem telas sobre as vias de pedestres para que haja sombra, e os lugares têm restaurantes projetados para que seus frequentadores comam em locais frescos e arejados”, afirmou Steves.

Além de tomar cuidados práticos, como usar protetor solar e beber muita água, Steves aconselha os turistas a reservar com antecedência entradas de museus, para evitar filas debaixo do sol. Ao planejar viagens futuras, afirmou ele, as pessoas devem considerar viajar nas “temporadas intermediárias”, termo pelo qual sua empresa de turismo passou a definir abril e outubro – não maio e setembro, como anteriormente.

“Estamos em um período de ajuste, enquanto nos reequipamos para viver em meio aos cada vez mais severos impactos das mudanças climáticas”, afirmou Steves, que mencionou a ironia das queixas sobre as altas temperaturas virem de turistas que tomam voos para a Europa que tanto emitem carbono na atmosfera.

Ele sugeriu que as agências de turismo devem investir em defesa do meio ambiente, agricultura agroflorestal e iniciativas similares para mitigar as emissões de carbono das viagens à Europa que elas vendem. Compensações de carbono são outra opção, mas especialistas geralmente concordam que apenas programas desse tipo não são capazes de cobrir o custo em carbono dos nossos voos.

“Mesmo se cessássemos todas as emissões de gases de efeito estufa hoje, um certo nível de aquecimento adicional já está injetado no sistema”, afirmou Rebecca Carter, que lidera um grupo de trabalho ambiental no centro de pesquisas World Resources Institute, com base em Washington.

Mas nós não paramos de despejar na atmosfera gases de efeito estufa: as emissões de dióxido de carbono estão aumentando, e o planeta está se aquecendo mais rapidamente do que jamais esteve. “Esse calor intenso no verão não é casualidade”, afirmou Carter. “Mas, em vez disso, “o início de uma tendência que vamos perceber cada vez mais”.

Aquecimento Mesmo se cessássemos as emissões de gases de efeito estufa hoje, um nível de aquecimento já está injetado no sistema

A evidência em campo na Europa é clara: no Reino Unido, os dez dias mais quentes nos registros (que começaram em 1884) ocorreram todos neste século. Na Alemanha, o número médio de “dias quentes” (com temperaturas acima de 30º C) anda significativamente mais elevado desde os anos 50. E na França, cientistas calcularam que as médias de temperaturas na cidade de Estrasburgo, no nordeste do país, estão equivalentes às registradas em Lyon, localizada cerca de 390 quilômetros a sudoeste, nos anos 70.

MUDANÇAS CLIMÁTICAS.

Carter acrescentou que as mudanças climáticas continuarão a irromper na forma de ondas de calor e outros eventos climáticos extremos, muitos dos quais perturbarão a logística do turismo. Ela lembrou que os aviões não possuem certificação para voar quando a temperatura se eleva demais, limite que já impediu decolagens no passado. Mas, quando se trata de decisões individuais em relação a viagens, muito se resume à sensação pessoal de conforto dos turistas.

“Na longa lista de fatores que todos nós avaliamos quando estamos decidindo para onde viajar, quando viajaremos e se vamos viajar ou não, a meteorologia e as mudanças climáticas devem entrar no cálculo”, afirmou Carter. •

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2022-08-13T07:00:00.0000000Z

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