O Estado de S. Paulo

‘Não há fórmula única para estimular produtividade’

Para neurocientista, um único algoritmo não basta para extrair o máximo da força de trabalho Neurocientista, formado em medicina pela Universidade de São Paulo, Nicolelis é professor emérito da Universidade de Duke

LUDIMILA HONORATO

“Quando aumentamos o número de tarefas, a profundidade de cada ação diminui exponencialmente. E acaba gerando distúrbios cognitivos e até psiquiátricos, como angústia, ansiedade e estresse.”

Atecnologia está tão presente na nossa rotina que mal a concebemos. É o celular que compacta diversas possibilidades, o assistente virtual que executa ações a um simples comando de voz, um relógio que monitora nossa atividade e traz insights sobre a saúde... São recursos tão intrínsecos ao dia a dia que se tornam extensões do corpo e da vida, aponta o neurocientista Miguel Nicolelis.

Embora essas ferramentas tenham nos trazido até o mundo moderno – e seria hipocrisia negar a importância dos avanços –, o pesquisador e professor emérito da Universidade Duke diz que essa revolução está moldando o comportamento e a forma de pensar do ser humano.

Nicolelis é pioneiro nas pesquisas sobre a interface cérebro-máquina, que possibilitou a pessoas sem mobilidade mexer um braço ou perna por meio de ondas cerebrais, com um exoesqueleto. Para ele, os excessos inibem a criatividade. Para ele, quanto mais as empresas definem regras rígidas do comportamento digital, menos estimulam a inovação.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Quais são as novas abordagens da relação entre tecnologia e ser humano?

A capacidade de gerar ferramentas é um dos atributos únicos do cérebro humano que ajuda a explicar toda a história da civilização. O cérebro humano não só é capaz de gerar ferramentas para ampliar nossa ação no mundo exterior como também assimila essas ferramentas como extensão do nosso corpo, do nosso sentido de ser. Estudamos isso em macacos, em seres humanos e confirmamos e expandimos essa ideia de que todas as tecnologias que nós criamos viram parte de nós, como a bicicleta, o carro.

Qual é o impacto disso? Essa propriedade do cérebro humano não só gerou o mundo moderno mas também, principalmente, acelerou o nosso mundo, para o bem e para o mal. Desde a revolução digital dos anos 1930 e 1940, ela vem alterando o nosso comportamento. Apesar de o cérebro não ser um sistema digital, estamos sendo imersos continuamente na lógica digital em basicamente tudo que fazemos. Isso vem alterando – nem sempre positivamente – o cérebro humano e, possivelmente, até direcionando não só o nosso comportamento, mas também selecionando e criando uma pressão seletiva para que tipo de ser humano teremos no futuro.

O que ocorreria?

São várias possibilidades, desde a redução do contato social, alteração do período de atenção, foco, tentativa de multitasking (multitarefa), que é uma coisa que nós conseguimos fazer, mas muito mal. Quando aumentamos o número de tarefas, a profundidade da ação em cada uma diminui exponencialmente. E acaba gerando distúrbios cognitivos e até psiquiátricos, como angústia, ansiedade e estresse.

Como o sr. vê tudo isso sendo aplicado nas relações de trabalho?

Mesmo as empresas altamente inovadoras não percebem que, quanto mais elas arregimentam as pessoas, quanto mais definem regras rígidas do comportamento digital, menos estimulam a inovação. Quando me pedem para falar sobre inovação, eu digo: não tem o que falar, inovação é fazer, não é receita. Para ter inovação, é preciso talento, criatividade e processos que permitam que a pessoa inove.

Então existe um excesso? O excesso de tecnologia está dando uma receita de bolo que não existe. Nós temos a ilusão de que todos os processos naturais humanos cognitivos podem ser reproduzidos ou descritos por um algoritmo digital. Não podem. É uma mínima fração dos fenômenos naturais que podem ser formulados na fórmula matemática e aí você cria um algoritmo digital. Então, quanto mais você arregimenta a mente humana, mais você limita o output (produção) dela. E é isso que a maior parte dos empresários não percebe e tenta criar uma série de normas de inovação.

Mas, por outro lado, algumas ferramentas podem ajudar, como na produtividade, por exemplo. Depende. A questão da produtividade é muito delicada, porque ela não é igual para todo ser humano. Cinco minutos do Albert Einstein concentrado valem por dezenas de anos da média humana. É sabido que, em agrupamentos sociais humanos acima de 150 indivíduos, trabalhando com um objetivo comum, começa a ficar difícil saber o que está acontecendo. Por isso que empresas que crescem acima de um certo número de funcionários precisam ter certa hierarquia de supervisão. Mas o que eu digo é: não existe uma fórmula única para estimular a criatividade ou produtividade. Você não vai contentar gregos e troianos com um único algoritmo, nem vai extrair o máximo da sua força de trabalho se usar a mesma fórmula.

É isso que falta aos executivos entender?

Liderança, na minha opinião, não é você gritar mais alto. A liderança é aquela que tem a sensibilidade de perceber quem trabalha para você, o que você quer extrair desse grupo como um todo e como você modula a sua forma de liderar. E isso não vai ser feito por um app digital. Os executivos são treinados com a ilusão de que vão controlar o processo 100%, mas pode esquecer.

O fato de ficarmos hiperconectados é prejudicial? Por um lado, tem a questão positiva de poder falar com plateias no mundo todo. Mas, por outro, você perde o contato social, que é essencial para o cérebro humano. Mas essas interações estão diminuindo cada vez mais, então vários atributos da mente humana estão sendo afetados pela nossa mudança de comportamento. •

AINDA NÃO É ASSINANTE? LIGUE: 0800 770 2166

ECONOMIA & NEGÓCIOS

pt-br

2022-08-13T07:00:00.0000000Z

2022-08-13T07:00:00.0000000Z

https://digital.estadao.com.br/article/282054805813243

O Estado