O Estado de S. Paulo

A perigosa rota de fuga dos venezuelanos rumo aos EUA

Mais de 28 mil venezuelanos usaram rota pela selva no Estreito de Darién rumo aos EUA este ano Adrian Cortez, que chegou aos EUA pela rota do Estreito de Darién, comemora ter chegado a salvo à Costa Rica.

CAROLINA MARINS

Mais de dez dias depois de deixar a Venezuela, Adrian Cortez, de 30 anos, comemora ter chegado bem a San José, na Costa Rica, em uma viagem que faz em grande parte a pé rumo aos EUA. O caminho escolhido por ele e por outros 28 mil venezuelanos somente este ano foi a do Estreito de Darién, uma selva montanhosa e fechada entre a fronteira da Colômbia e do Panamá, considerada uma das rotas migratórias terrestres mais perigosas do mundo, segundo a ONU.

Com a piora da situação econômica nos países vizinhos à Venezuela e com as novas exigências de visto para esses migrantes na América do Sul e Central, o número de venezuelanos cruzando o estreito saltou mais de 900% desde o início do ano. Pela primeira vez, eles representam o maior grupo a se arriscar na floresta tropical, segundo dados do governo do Panamá.

De janeiro a junho – último mês disponível – mais de 28 mil venezuelanos passaram de maneira irregular pela região de Darién. Muito acima dos 2.819 do ano anterior inteiro e superando haitianos e cubanos, que costumavam ser os maiores grupos nesta fronteira até 2021. A situação preocupa organizações humanitárias internacionais, já que a travessia é extremamente perigosa por causa das condições da selva e da existência de grupos criminosos.

PAÍSES VIZINHOS. Embora os EUA sejam o desejo de grande parte dos venezuelanos que emigram, muitos procuravam destinos na própria América Latina, mesmo que de maneira provisória. A Colômbia é o país que mais recebe, com mais de 2,4 milhões de pessoas. Em seguida vêm Peru (1,3 milhão), Equador (513 mil) e só então EUA (465 mil). Dos mais de 6 milhões de venezuelanos deslocados no mundo, 5 milhões estão na América Latina e Caribe.

Especialistas apontam uma série de fatores para esta mudança no comportamento migratório: rota mais barata, piora na situação econômica dos países que costumam recepcionar esses migrantes, novas exigências de visto na região e até o novo giro à esquerda dos países latino-americanos, que causam temores em venezuelanos que os associam ao regime chavista.

“Muitos desses venezuelanos já eram imigrantes na

América do Sul e não têm intenção de voltar para a Venezuela, mesmo com a piora na economia da região. Então, o que eles fazem é procurar outros países para migrar, e é por isso que vemos esse salto no cruzamento por Darién”, explica María Isabel Puerta Riera, professora de ciência política no Valencia College, na Flórida.

“A pandemia praticamente obrigou a economia a entrar em recessão mundial. E, nos países do Sul, isso foi sentido de forma muito mais dura. Isso repercute no trabalho. Esses imigrantes não conseguem emprego e não têm como manter sua subsistência. Então, em vez de retornar à Venezuela, eles simplesmente decidiram buscar outros países.”

ROUBOS. É o caso de Adrian Cortez, que decidiu arriscar a rota porque não encontrava emprego na Venezuela, onde trabalhava como cozinheiro. Ele deixou a mãe e a avó para encontrar trabalho nos EUA e lhes enviar dinheiro. “Entrar na selva de Darién foi a pior experiência da minha vida”, conta. “Você vê corpos, violência, exaustão. Fiquei dois dias sem comer porque me roubaram a comida.”

A rota comum de quem planejava migrar aos EUA era seguir por terra até um país vizinho e só então viajar de avião até o México ou para algum outro país da América Central, evitando o Estreito de Darién. Mas, desde o início do ano,

países como México, Costa Rica e Belize passaram a exigir vistos, em uma medida que especialistas apontam ser uma pressão direta do governo americano para conter as caravanas de migrantes. Com isso, os três países se somam a Panamá, Honduras e Guatemala, que já exigem visto desde pelo menos 2017.

OBSTÁCULOS. “Quando visitamos Darién, muitos venezuelanos nos contaram que a razão pela qual tiveram de atravessar por lá é a imposição de vistos pelo México e por outros países da América Central que os impossibilitava de voar mais para o norte e, portanto, eram obrigados a atravessar Darién ao migrar para os EUA”, afirma Tamara Taraciuk Broner, vicediretora da divisão das Américas da ONG Human Rights Watch.

“Ainda é difícil e caro para os venezuelanos obter um passaporte, o que também dificulta a obtenção de um visto”, completa. Tirar um passaporte na Venezuela custa atualmente mais de 1.000 bolívares soberanos (US$ 200).

As medidas, no entanto, não impediram o fluxo migratório, apenas expuseram os migrantes a maiores riscos. Em janeiro, eram menos de 2 mil os venezuelanos cruzando por Darién. Em junho, foram mais de 11 mil e o governo do Panamá alerta que o número só tende a aumentar. “Enquanto a situação nos países de origem for a mesma, os migrantes continuarão a sair, mesmo que isso signifique exposição a sérios perigos, como os de Darién”, disse Broner.

Além disso, o principal país receptor, a Colômbia, também endureceu suas regras para os venezuelanos. O governo de Iván Duque criou o Estatuto Temporário de Proteção, que garante acesso a emprego formal, saúde e educação, mas somente para aqueles que entraram de maneira irregular até 21 de janeiro de 2021. Quem entrou depois, está desprotegido e prefere continuar caminhando.

Gustavo Petro assumiu a presidência colombiana, mas a situação permanece incerta. Embora Petro evite colar sua imagem à de Nicolás Maduro, somente o fato de ser esquerdista já deixa os migrantes apreensivos. “Uma vez que Gabriel Boric ganha no Chile, Pedro Castillo no Peru e agora Petro na Colômbia, o venezuelano entende que isso é uma mensagem”, afirma Puerta Riera. “Isso aconteceu na Argentina. Quando Alberto Fernández ganhou, muitos venezuelanos deixaram o país, pois o relacionaram ao fenômeno chavista.”

ROTA PERIGOSA. O Estreito de Darién é uma selva úmida, extremamente fechada e montanhosa que interrompe a Rodovia Pan-americana na fronteira entre Colômbia e Panamá. Para cruzá-la, os grupos de migrantes vão por terra até o limite do território colombiano, então pagam guias para ajudá-los a caminhar de cinco a dez dias dentro da mata.

O trajeto precisa ser feito de forma rápida, para evitar que alimentos e água acabem, e somente sob a proteção da luz do dia, tornando os descansos raros e apenas quando chegam a aldeias indígenas. “O primeiro risco é o cansaço do próprio percurso”, conta Marisol Quiceno, responsável por assuntos humanitários da ONG Médicos Sem Fronteiras na Colômbia. “As caminhadas são longas, associadas com um clima úmido, com escaladas de montanhas e falésias.”

“Além disso, as pessoas estão enfrentando situações de violência sexual e selvageria em geral. Nesta rota existem grupos que estão estuprando mulheres. De abril do ano passado a julho deste ano fizemos 456 atendimentos por violência sexual, todos por estupro”, afirma Quiceno.

O venezuelano Manuel Monterrosa, de 34 anos, conta que pensou em desistir várias vezes durante o caminho, mas que retornar era tão perigoso quanto continuar. Ele fez a travessia no início do ano e hoje vive em Miami. Ele deixou a Venezuela porque já não aguentava mais não ter dinheiro para comer. No entanto, ele relata que cruzar Darién foi a pior experiência de sua vida e desaconselha os que querem seguir o mesmo caminho.

“Entramos com um grupo de umas 800 pessoas, mas eu calculo que cerca de 80 saíram em seis dias, ou seja, o restante ficou dentro da selva e é uma selva muito dura”, relata. “Eu sou jovem, tenho algum preparo físico, e me deu muita dor ver as pessoas que ficaram, se arrependendo muito, e você não pode fazer nada, pois precisa sair antes que acabe a água e a comida.”

YOUTUBE. Monterrosa foi filmando todo o trajeto e, quando já estava seguro nos EUA, montou uma série no Youtube para mostrar os perigos da viagem. “Passar por Darién é uma experiência que marca sua vida, pois você vê cadáveres pelo caminho, vê pessoas perdidas. Encontramos um árabe do Quirguistão que estava perdido por três dias em uma montanha chamada ‘montanha da morte’ com seu filho, incapaz de falar espanhol, praticamente bebendo lama porque não tinha água.”

Falta de opção Venezuelanos passaram a usar a rota na selva depois que países vizinhos começaram a exigir vistos

O que impressionou Monterrosa – e também Cortez – foi encontrar muitas crianças pelo caminho. Segundo dados do governo do Panamá, mais de 7 mil menores de idade já cruzaram a selva, alguns até mesmo são encontrados desacompanhados, alerta a Organização Internacional para as Migrações (OIM). A travessia de famílias inteiras é o que mais preocupa os trabalhadores do Médicos Sem Fronteiras, pois a presença de crianças, mulheres grávidas e idosos torna o trajeto mais longo.

CRIANÇAS. “Nossa maior preocupação é a violência sexual, que em 11% dos casos envolve crianças entre 9 e 14 anos”, afirma Quiceno, do MSF. “Em alguns casos, as famílias não conseguem continuar caminhando, então pedem para alguém, um estranho, levar a criança, que chega sem nenhum registro familiar.”

A vice-diretora da HRW alerta que a melhor maneira de evitar situações como essa é a regularização. “Devemos lembrar que a irregularidade abre as portas para a exploração trabalhista, xenofobia e possível tráfico de pessoas. E não é apenas um problema porque viola os direitos dos migrantes, mas também não contribui em nada para melhorar a situação dos países”, afirma Broner. •

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