O Estado de S. Paulo

Crianças e cães

Pesquisa mostrou que interagir com cães reduz o estresse e melhora a imunidade das crianças. Escolher o animal certo, no entanto, é fundamental

KÁTIA ARIMA

Interação com animais reduz o estresse e melhora a imunidade das crianças. Claudia Jirousek tinha os cães antes de Manuela nascer. Escolher animal certo é fundamental.

Reforço positivo

‘O cão precisa ver a criança como algo bom, que vai trazer uma vantagem para ele’

Quatro meninas, um menino, três gatas, três cachorros, um peixe e duas galinhas. A dona de casa Camila Maciel, de 36 anos, e seu marido Odair José Miranda, de 35, gostam da casa assim, com muito convívio entre as crianças e bichos de estimação. “Essa interação é boa para o desenvolvimento delas, que aprendem a ter responsabilidade cuidando dos animais”, diz.

A percepção da mãe é confirmada por psicólogos e especialistas em comportamento animal, embora não sejam necessárias justificativas para permitir essa amizade. Uma pesquisa publicada em junho, realizada com crianças de 8 e 9 anos no Reino Unido, demonstrou que uma interação semanal de 40 minutos com cães e o adestrador foi suficiente para reduzir os níveis de cortisol, o hormônio do estresse, com efeitos duradouros. Estudos também indicam melhorias na imunidade, autoestima, capacidade de concentração e nas habilidades de empatia e socialização infantil.

Mas, para que essa relação seja segura e positiva tanto para os bichos quanto para os pequenos humanos, há alguns procedimentos e cuidados que devem ser considerados pelos adultos. A começar pela escolha do animal, que não deve ser feita por impulso, mas considerando as características e demandas de cada “candidato”. Cachorro, gato, coelhos e porquinhos-da-índia, tartarugas e peixes são os mais populares, lista a médica veterinária Khadine Kazue Kanayama, do Hospital Veterinário da Universidade de São Paulo (USP). “Antes de adquirir um animal de estimação, os pais devem avaliar o espaço disponível, além de se programarem com relação ao aumento das responsabilidades e gastos com alimentação, vacinação, visitas ao veterinário, cuidados com higiene, compromisso com o animal por anos”, conta.

Quando Suzana Tomei Toniato, de 37 anos, teve seu filho León, hoje com 4 anos, a família tinha os felinos Francisco e Miramar – há um ano, ganharam a companhia de um terceiro gato, o Meia-noite. A interação do garoto com os bichos é ótima, embora os animais tenham sofrido um pouco com os puxões de rabo e dos pelos quando León ainda era bebê. “Com o tempo, ele foi aprendendo a ter uma interação tranquila e cheia de amor. Vejo que esse convívio ajuda a desenvolver a empatia e responsabilidade na criança. León presta atenção se falta comida e água para os gatos”, lembra Suzana.

MELHOR AMIGO. Os cães são campeões absolutos na preferência das famílias brasileiras. Mas a convicção dá lugar à dúvida na hora da escolha da raça. Segundo os especialistas consultados pelo Estadão, os cães podem ser treinados para ter um bom convívio com crianças – a agressividade não está relacionada apenas à sua raça. “Fatores como a idade, sexo, ambiente e até hormônios podem influenciar na agressividade. Cães podem ter comportamentos mais agressivos diante da dor, do medo, numa interação competitiva territorialista ou por posição hierárquica ameaçada”, ensina Khadine.

Ela explica que o temperamento de cada raça foi sendo selecionado por gerações, aumentando ou diminuindo certas características. Maltês, yorkshire, shih tzu, labrador, golden retriever, dachshund e o famoso viralata são considerados mais dóceis e brincalhões, por isso costumam ser indicados para famílias com crianças. Fila brasileiro, pit bull e rottweiler são relacionados à agressividade. “Mas não é possível generalizar, pois cães têm características individuais”, avisa a veterinária.

Ricardo Maeda, de 15 anos, tinha 4 quando o pit bull Brownie chegou à sua casa, ainda filhote. “É meu melhor amigo”, confirma, convicto. Apesar da fama da raça, o cão nunca atacou ninguém ou demonstrou agressividade, garante a empresária Sabrina Mayumi Okada, de 31 anos, mãe de Ricardo. Segundo ela, o cão é muito sensível às emoções do garoto, que tem transtorno do espectro autista (TEA). “Quando o Ricardo era mais novo, tinha crises e se acalmava ao acariciar o Brownie. Meu filho aprendeu com o cão a importância do cuidado com o próximo, a respeitar a natureza. Percebe se o cão está triste, com fome ou frio”, ressalta.

A tendência do cachorro é cuidar das crianças, afirma o adestrador Ademar Venâncio da Silva, que treina cães há 45 anos. “Para que isso aconteça, é preciso que o animal se sinta totalmente seguro, confortável e relaxado”, observa. Quando faz o trabalho de socializar um cachorro, Silva não leva em consideração a raça e o porte dele. “Mesmo um cão brutamonte pode se relacionar bem com crianças”, analisa.

Embora as pessoas queiram humanizar os cães, Silva alerta que eles nunca deixarão de ter comportamento de animais irracionais, que aprendem por indução e associação positiva. “O cão precisa ver a criança co

mo algo bom que vai trazer uma vantagem para ele. Se um bebê chegar de forma repentina e o cão não receber mais carinho e for impedido de entrar no quarto, ele não vai aceitar bem a mudança.”

Acostumada a ser mimada pelos seus donos, Gipsy, uma cavalier king charles spaniel, ficou carente com a chegada, em 2021 de uma bebê à família Jirousek. “A Gipsy ficou pedindo mais atenção, querendo grudar ainda mais na gente”, recorda Claudia Jirousek, de 42 anos, mãe de Manuela – e de outros dois cães da raça shih tzu, Bruno e Tuco. Os bichos não sofreram restrições, nem foram impedidos de circular pelos ambientes da casa. Tiveram oportunidade de cheirar a bebê (e até dar uma lambidinha) para se familiarizarem. Hoje, Manuela tem 1 ano e, literalmente, deita e rola com os cães, além de dividir alguns brinquedos com eles.

ADAPTAÇÃO GRADUAL. Quando uma família está à espera de um bebê, a recomendação do adestrador Silva é começar a fazer uma adaptação gradual da rotina e do ambiente, para garantir a segurança da criança. Além disso, apresentar com antecedência acessórios que serão usados pelo bebê, como carrinho e andador.

Meses antes da chegada do filho Pedro, a psicóloga Mayra Lovatto, de 31 anos, acostumou a pug Bisteka a dormir na sua caminha no chão, já que ela iria perder o seu aconchego na cama com a chegada do bebê. “Fiquei preocupada sobre como ela se sentiria, já que a atenção da casa sempre esteve voltada para ela. Nos preocupamos também com a segurança do Pedro, imaginando que ela poderia ficar mais agressiva, mas isso não aconteceu”, esclarece a mãe. Bisteka hoje convive bem com Pedro, de 7 meses, e o acompanha pela casa, embora ela não aceite ser tocada pelo bebê.

Cães medrosos, que estão sempre na defensiva e não sabem avisar que não estão gostando, exigem mais cuidado. “De jeito nenhum esse cão deve ter acesso direto a uma criança. Não há espaço para experiências quando a segurança dela está em risco”, alerta o adestrador

Silva. Os cães que reagem com exagero por conta da possessividade a um objeto, pessoa ou comida também podem oferecer um risco à integridade da criança. Nesse caso, o adestrador pode ajudar a família a realizar a “dessensibilização” dos objetos do cão, um processo que permite ao animal se desapegar dos seus brinquedos, aceitando uma troca de seu interesse.

O menino Valentim Scopelli dos Santos, de 3 anos, levou uma mordida por ter pegado um dos brinquedos do seu próprio cão, sem raça definida e de porte médio. “Não foi uma mordida funda, mas machucou o rosto, perto do nariz”, conta a tia, a médica veterinária e adestradora Raquel Scopelli. Nem por isso ele desistiu de brincar com cães. Nas férias com a tia, fez questão de conhecer Zuko, filhote que havia sido treinado por Raquel. “Ele foi resgatado, por isso era sensível. Priorizei a socialização dele em ambientes com crianças, parques, pois sabia que ele teria de conviver com meus sobrinhos.”

Após explicar para Valentim que ele não poderia mexer no cão com força, a veterinária promoveu a primeira interação de ambos, com a oferta de petiscos. “Por alguns dias, deixei o Zuko em um cercado, com seus brinquedos, de forma que ele pudesse me observar brincando com o menino, para só então permitir o contato mais próximo, que foi muito tranquilo.”

O adestrador não resolve os problemas do cão sozinho, avisa Raquel. “O adestramento nunca é uma solução, mas um caminho, a partir de um olhar geral que considera a rotina da família e o manejo do animal. Quando dizem que o problema é do cão, que ele é bravo, geralmente esquecem que o cão não é um brinquedo, mas uma vida com vontades e necessidades próprias que precisa ser respeitada. Ele pode estar sem paciência por conta de um estresse crônico”, observa.

O cão também pode ter vivido um trauma que o levou a um comportamento de generalização. “Quando ele vive uma experiência ruim com uma criança com uma determinada cor de roupa, por exemplo, tende a morder quando se depara com a mesma situação, para evitar que isso se repita.” Outro fator é a chamada “fase de socialização”, após o desmame. “Nesse período, muitas vezes o cão não está vacinado e por isso é impedido de sair na rua e ver outras pessoas e crianças. Se isso acontecer, ele poderá ter medo dessa interação.”

Raquel atendeu a família de Mariana Brandini Vanso, de 35 anos, empresária, mãe de Valentina, de 8 anos, e Francisco, de 4. A casa conta ainda com Baruc, um golden retriever macho, de 3 anos, e Noa, dálmata fêmea, de 1 ano. Ela ajudou a promover mudanças no comportamento dos cães, como fazer xixi no lugar certo, não comer os brinquedos das crianças e passear de forma mais tranquila. “Esses treinos facilitaram a nossa vida e a nossa relação”, admite Mariana. A mãe percebeu que Valentina aprendeu com Raquel a lidar melhor com os cães. “O adestramento ensina também os tutores a entender a linguagem dos cães, o que melhora o relacionamento com eles. O ambiente familiar ficou mais agradável.”

E QUANDO O BICHO MORRE? Na sala da casa de Mariana, há duas caixinhas com as cinzas de dois animais de estimação que já morreram, Floquinho e Mel, junto de suas fotos. Quando Valentina nasceu, Mariana já tinha dois cães idosos, da raça shih tzu. Floquinho teve um linfoma e morreu quando Valentina tinha 3 anos. “Ela ficou muito sentida e não entendia o que tinha acontecido. A gente dizia que ela tinha virado uma estrelinha”, conta Mariana.

Quando Mel ficou doente, também com linfoma, os pais falaram sobre a perda com antecedência. “Explicamos que teríamos que ajudar a Mel no que ela precisasse até o seu último segundo de vida, pois ela teria suas limitações e precisaria de muito carinho e atenção.” A cachorra morreu em maio, com muito choro das crianças. “Eles falam muito dela, sentem falta. Estão no processo de luto.”

Com a expectativa de vida mais curta que das pessoas, os animais de estimação oferecem às crianças uma oportunidade de vivenciar as mudanças e limitações da vida e lidar com os próprios sentimentos, explica a psicóloga Valéria Marques Oliveira, pesquisadora na área de psicologia do desenvolvimento. “Ela vai notar que quando o bicho envelhece já não tem mais disposição e que essa transformação faz parte do ciclo da vida. Quando o animal morre, a família deve se permitir chorar, como parte do luto. Com o tempo, a dor diminui e ficam as boas lembranças”, completa.

A psicóloga orienta as famílias a não mentirem, nem usarem de metáforas para amenizar o sofrimento da criança. “É melhor sempre falar a verdade, de forma objetiva, pois a criança pode se sentir ludibriada. E mesmo que ela faça as mesmas perguntas a respeito da morte, é preciso responder com paciência, pois a criança precisa disso para se reorganizar”, conclui.

Mas, apesar dos momentos difíceis, a convivência entre animais e crianças vale a pena porque é feita principalmente de experiências positivas, com muita troca de afeto, reforça a psicóloga Valéria. “O animal não fala, nem tem pensamento lógico, mas aceita o seu dono de forma incondicional. Estão disponíveis e fazem com que a pessoa se sinta acolhida. Trata-se de um encontro de qualidade.”

Ao desfrutar desse benefício, Valéria chama atenção para a importância da reciprocidade. “O animal tem hábitos e demandas, que devem ser respeitados pelos adultos, para que as crianças aprendam sobre o cuidado. A partir dessa convivência, a criança aprende sobre o respeito à vida e sua responsabilidade com o meio ambiente. É uma aprendizagem fantástica.”

“O adestramento nunca é uma solução, mas um caminho. Quando dizem que o problema é do cão, esquecem que ele é uma vida com vontades e necessidades”

Raquel Scopelli

Veterinária e adestradora

“A partir dessa convivência, a criança aprende sobre respeito à vida e responsabilidade com o meio ambiente. É uma aprendizagem fantástica”

Valéria Marques Oliveira

Psicóloga

“Mesmo um cão brutamonte pode se relacionar bem com crianças”

Ademar Venâncio da Silva

Treinador

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