O Estado de S. Paulo

Racismo Saidiya Hartman conta a história dos revolucionários

Primeira autora confirmada da Flip 2022 fala sobre como a escravidão moldou a sociedade

CAIO DELCOLLI

Saidiya Hartman Escritora e professora titular da Universidade de Columbia

Seja andando por vielas enquanto bebiam cerveja, dançando em um bar dentro de um porão ou indo para a cama com outras mulheres, as personagens de Vidas Rebeldes, Belos Experimentos, da norte-americana Saidiya Hartman, fizeram história entre o fim do século 19 e o início do 20 (mesmo sem terem entrado em livros escolares). Esse laboratório social é tema do livro vencedor, na categoria crítica, do National Book Critics Circle Award – e também será de conversas na Festa Literária de Paraty (Flip) deste ano. A escritora é a primeira confirmada para a 20.ª edição do evento, que ocorre entre 23 e 27 de novembro.

“Assim como nos Estados Unidos, a escravidão moldou a sociedade brasileira. Não podemos fingir que o fim do ser humano como propriedade é o fim da ordem que tornou a escravidão possível. Precisamos confrontar isso”, recomenda a autora.

Ao combinar pesquisa, imaginação e poesia, Vidas Rebeldes, Belos Experimentos faz uma crônica sobre jovens negras pioneiras num estilo alternativo de vida, em guetos da Filadélfia ou de Nova York, fora dos moldes patriarcais. Na entrevista, Hartman, de 60 anos, fala sobre o legado de negras rebeldes e o ativismo de figuras públicas hoje, como Beyoncé, entre outros assuntos.

Vidas Rebeldes cobre o período de 1890 a 1935. O que faz essas décadas serem importantes para os afroamericanos?

Foi o tempo em que uma ou duas gerações já haviam nascido depois da abolição. Também foi a virada de século, com o nascimento do moderno, e o ponto mais violento a que o racismo chegou, um período que historiadores chamam de nadir. Foi quando emergiu a segregação com aparato legal – muitos deixaram as plantações do Sul e se mudaram para as cidades. Havia também a constituição da vida moderna, a ideia de que a 1.ª Guerra Mundial era o limiar do novo e os negros não estavam incluídos nisso.

Você tem um método de escrita único, a “fábula crítica”, que une a pesquisa histórica rigorosa à linguagem literária e à imaginação ficcional. Como é recebida por outros acadêmicos, leitores e a crítica literária?

Desde meu primeiro livro, quero que as pessoas sintam a força das vidas impactadas por esses acontecimentos. Elas eram de carne e osso e tinham desejos. São a História encarnada. Meu método tem sido desafiador para a prática tradicional da academia, mas Vidas Rebeldes tem recebido vários prêmios. Há um reconhecimento da importância da figura dos negros, dos marginalizados e meios para animar a vida de quem não deixa um grande arquivo.

Você questiona os seus achados em arquivos. O que aprendeu sobre eles para a pesquisa deste livro?

Os documentos que eu encontrei traduzem a vida negra como um problema social, e principalmente em legendas das fotografias. Duas me vêm à mente. Uma é a de duas garotas diante de um prédio e meninos russos e judeus em um canto. A legenda dizia “quarteirão negro”, mas por que, quando a favela era interracial? Porque isso era considerado um perigo. A outra fotografia traz uma legenda dizendo em tom ameaçador: “Dois homens negros na porta olhando crianças italianas”. O meu trabalho crítico é tentar desfazer isso, pois se tratam de documentos ricos que desafiam a nossa maneira de entender o passado. Sou uma escritora de não ficção criativa porque a realidade é mais estranha que a ficção.

Essas “modernistas sexuais” e “radicais” sofreram consequências?

Sim, elas eram frequentemente presas. Havia o conceito jurídico de “status offense” (ofensa de status, em livre tradução para português), em que um crime é determinado não com base no ato em si, mas por quem o pratica. Por exemplo, não era crime fazer sexo, mas assim seria caso você fosse menor de idade. Status offense poderia ser uma mulher adulta andando sozinha pelas ruas da cidade à noite. Negras foram submetidas à violência policial. Os homens chineses eram considerados ameaças sexuais – e as negras que aparentemente os namoravam, poderiam ser enviadas a um reformatório ou serem vistas como prostitutas porque atravessaram a barreira racial.

Há similaridades entre as mulheres negras sobre as quais você escreve e as de hoje?

As do meu livro foram modelos para as mulheres queer e insurgentes de hoje. Não viviam dentro do confinamento patriarcal. Elas escolheram ser mães porque quiseram. Hoje, por outro lado, a Suprema Corte voltou atrás com a Roe vs Wade (decisão que, nos anos 1970, tornou possível a interrupção de gravidez legal) e alguns Estados têm banido o aborto. Essas jovens negras enfrentaram as normas legais do tempo delas, o que tem sido exigido de nós no século 21, tendo em vista os imensos retrocessos nos direitos ao aborto e à liberdade de reprodução.

Você descreve o mesmo sistema que Beyoncé confronta na nova música dela, Break My Soul (Quebrar Minha Alma). Como você a avalia enquanto ícone, mesmo no contexto capitalista, para as jovens negras de hoje?

Escrevo sobre desconhecidos, e Beyoncé é um ícone global do pop, algo parte de uma cultura capitalista de commodities. Ela é uma artista muito talentosa e uma figura complexa, mas no meu panteão de feministas, não é uma figura central, embora a música seja poderosa. Existem vários feminismos. Um deles está contente com o capitalismo, e esse não é o meu. Existem outras feministas, como Angela Davis, que focam de verdade as estruturas que tornam a ordem vigente possível. •

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2022-07-24T07:00:00.0000000Z

2022-07-24T07:00:00.0000000Z

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